Project Gutenberg's Scenas Contemporaneas, by Camilo Castelo-Branco This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Scenas Contemporaneas Author: Camilo Castelo-Branco Release Date: October 26, 2007 [EBook #23203] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK SCENAS CONTEMPORANEAS *** Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) SCENAS CONTEMPORANEAS. SCENAS CONTEMPORANEAS POR CAMILLO CASTELLO-BRANCO. 2.^a EDIÇÃO. PORTO: EM CASA DE CRUZ COUTINHO--EDITOR, Rua dos Caldeireiros n.^{os} 18 e 20. 1862. Porto--TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA, _Rua da Cancella Velha n.^o 62._ MORRER POR CAPRICHO. I. Os meus amigos, de certo, não sabem o que é caçar coelhos na neve? Não admira. Imaginem-se em qualquer aldêa, nas visinhanças do Marão. Olhem em redor de si, e contemplem o quadro que os viajantes na Suissa lhes descrevem todos os dias, supposto que nunca sahissem da sua terra. A primeira impressão que recebem é a do assombro. Leguas em roda, nem na terra nem no céo, se descobre uma crista de rochedo, a frança d'uma arvore, a dobra d'uma nuvem, que não seja branca, alvissima, desde um horisonte a outro horisonte. E, depois, ha ahi em toda essa natureza amortalhada um silencio funebre. Não cantam as aves, não balam os cordeiros, não silva o buzio de pegureiro, não soam nas quebradas as campainhas da arreata de machos. Se ouvis um rugido assobiado ao qual respondem outros, não vos afasteis para longe da casa d'onde presenceaes, com o coração confrangido, esta scena. É uma alcatéa de lobos, que descem famintos da serra, e serão capazes de vos hirem buscar á cozinha, onde naturalmente tiritaes de frio, sentados ao pé do tóro de carvalho. Faço-vos esta recommendação porque sois uns homens afeminados, que nunca sahistes dos salões, dos botequins, dos theatros, e das praças. Aposto que se desseis de face com um lobo, de garras arqueadas, e fauces inflammadas, antes que o lobo vos désse o cordial abraço da fome, já vós tinheis perdida a sensibilidade, e consciencia da vida, e até o direito que todo o homem tem de matar não só o seu semelhante, mas até um lobo, em justa defeza! Se eu podesse contar com o vosso animo, aconselhar-vos-hia, que em uma d'essas manhãs de neve, com meio covado de altura nos terrenos chãos, tomasseis um cajado, e, com duas finas cadellas de coelho, fosseis dar na serra um passeio d'algumas horas. O peor que podia succeder-vos era o desvio do caminho, que só com muita pratica se acerta, e, quando mal vos precatasseis, resvalar n'um abysmo de neve, onde nem as orelhas de fóra dissessem ao passageiro que um moço, a todos os respeitos excellente, fôra alli absorvido por um sorvete dos que a natureza offerece aos amantes de refrescos, com menos economia que o _Guichard_. Afóra este inconveniente, ainda ha o dos lobos, que muitas vezes tomam conta das nossas cadellas, devoram-nas com uma perfeição e rapidez fabulosas, e, quando Deus quer, fazem dos nossos corpos um supplemento nutritivo ás nossas cadellas, deixando-nos a alma por muito grande obsequio. O terceiro percalço, affecto á caça do coelho na neve, aconteceu-me a mim, ultimo dos mortaes, em 26 de Dezembro de 1844. É o que tereis a bondade de procurar saber no capitulo seguinte. II. Fui convidado por alguns amigos a acompanhal-os á serra, porque o sol refrangia-se em scintillas na neve, que parecia desfazer-se em laminas de prata. Fui muito contente da consideração que se me dava, como caçador, porque, em verdade vos digo, atirei com certeiro olho a perdizes e galinholas. Se nunca matei nenhuma, o que tambem é verdade, deve-se á pessima polvora das nossas fabricas. Em compensação, matei muito melro e tordo nas serdeiras, e consegui matar de noite uma coruja, africa que muitos caçadores famosos de certo não fizeram. Eu fui um grande homem antes de escrever folhetins! Deus perdôe a quem me torceu a vocação! Eu podia, a estas horas, ser um habil corredor de lebres, e assim tornei-me a lebre dos galgos sociaes. Estes galgos sociaes, meu leitor, se tu és um d'elles, permitte-me dizer-te que tens o faro muito descaçado, e que eu hei-de saltar por cima de ti, quando cuidares que me abocas. Se não és galgo, sensato amigo, aqui rasgo o diploma de tolo, que te concedi, sem te levar direitos de mercê. Agora, vai entrar a historia direitinha até ao fim. III. Subimos á esplanada da serra. Eramos seis. Dividimo-nos em tres grupos, e combinamos em nos darmos signaes com tiros no caso de nos perdermos encobertos pelo nevoeiro, que poderia de improviso esconder-nos os cabeços das serras, unicas balizas que nos serviam de guia. Assim combinados, cada grupo, com dous cães, seguiu as pégadas dos coelhos impressas de fresco na neve. Eram muitos, e morriam á pancada, porque os pobresinhos alapados debaixo das urzes, se fugiam, eram logo mordidos pelos cães; se esperavam eram apanhados á mão. Alguns, mais previdentes, tinham emigrado para as fundas colheitas, formadas pelas sinuosidades interiores dos penedos agglomerados. A estes perseguia-os o furão, que eu levava no meu cacifo, desalapava-os, e os cães, farejando as avenidas da colheita, recebiam-os nos dentes, sacudiam-nos com o rancor do instincto, e atiravam-nos mortos aos nossos pés. Andamos assim uma hora, tão entretidos, tão esquecidos do mundo, que nunca tão distrahida hora eu tive na minha vida, a não ser aquellas em que durmo, e sonho que hei-de tornar áquelles meus dias de candura, depois de lidar muito com a innocencia d'estas angelicas creaturas, que vestiriam, por innocentes, como Adão e Eva, se a serpente lhes não dissesse que andavam indecentes. Ao cabo d'essa hora, toldou-se o ar, e cahiu uma segunda camada de neve. O meu companheiro quiz logo voltar sobre os seus vestigios, porque (dizia elle) d'aqui a minutos as nossas pégadas estarão cobertas, e não saberemos caminhar para o nascente nem para o poente. --Eu, por ora, não vou--lhe disse eu. --Porque? --Estou bem aqui. Acho muita poesia n'este quadro. Imagino que esta chuva de neve se transforma em chuva de fogo... Este nevoeiro, que rola em ondas aos nossos pés, e sobre a nossa cabeça, afigura-se-me o fumo do grande incendio no juizo final! Olha... não te parece que o vento espalha já as cinzas d'uma grande cidade! Não vês Sodoma lá em baixo vomitando columnas de fumo?... --Eu não vejo nada... Acho de muito mau gosto as tuas visões... vamos embora... --Vai tu... e quando encontrares os nossos companheiros, dá um tiro, que eu lá vou ter. Estou bem aqui; não me mudo por cousa nenhuma. --Até logo. IV. E eu continuei a vêr as minhas visões. Parece-me que, por esses tempos, fui poeta, muito poeta, em elevações d'alma para cousas de imaginação, que não era esta fria imaginação, que tenho hoje. Absorvido no meu quadro do juizo final, que só uma phantasia abrasada poderia dar-me, transfigurando a neve em fogo, ouvi um tiro, e não fiz caso. Ouvi segundo, e senti um piedoso desdem por aquelles homens, prosa vil, que não tiravam partido do grandioso panorama, que a mão liberal da natureza desenrolava diante de meus olhos absortos. Não sabeis que o nevoeiro embriaga? É uma verdade. A cabeça enfraquece; nos ouvidos ha um zunido, que vos faz perder o rumo. Sentis uma sensação desagradavel, semelhante á do giro penoso em que a indigestão do vinho vos traz a cabeça vertiginosa. Foi o que eu senti, quando me furtei ás minhas contemplações improprias do tempo e do lugar. Ergui-me, e não sabia já designar a direcção que levára o meu companheiro, nem o ponto onde se deram os tiros. Desfechei a minha clavina, mas a humidade inutilisára a escorva. Os cães, que poderiam ensinar-me o caminho, tinham seguido o meu companheiro. Não desanimei. Tal direcção pareceu-me que deveria ser a melhor, e segui-a. O nevoeiro deixava-me vêr apenas o espaço que pisava. Atravessei a lombada da serra, e comecei a descer. Escorreguei muitas vezes nos algares da encosta, e senti a neve pela cintura. Gastei duas horas, tres, quatro, descendo, descendo, sem encontrar uma povoação. Conheci que estava perdido. A neve augmentava. A noite aproximava-se, e nem um symptoma de vida! Então, sim; tive medo, e imaginei que a minha sepultura, sem solemnidade alguma, deveria encontral-a brevemente no estomago d'algum lobo. E, de mais a mais, eu tinha fome. Todos os provimentos, que eu levava na minha rede, eram um pedaço de brôa para o meu furão. Reparti-o entre nós. O animalsinho comeu com appetite, e pilhando-se solto, como o seu officio era desemlapar coelhos, entrou na primeira lura que viu, e fez saltar fóra um gato bravo, que espirrava diabolicamente por cima dos tojos coroados de neve. Nunca me esqueceram os espirros d'este gato bravo! Continuei o meu caminho, sem esperanças de encontrar pousada. Escureceu. Encostei-me, desalentado, a um castanheiro, e fiz da minha pobre cabeça uma cabeça academica. Pensei muito, estabeleci varios raciocinios, que conspiraram em provar-me, que, perto d'alli, devia existir uma povoação, por isso que os castanheiros, campos, e paredes eram indicios de aldêa proxima. N'este comenos, ouvi um mugido de boi, e em seguida uma sineta, que tocava ás «Ave-Marias.» Aquellas tres badaladas ergueram a Deus o meu espirito reconhecido. Orei com a devoção dos dezoito annos. Não vos digo mais nada a este respeito, porque me não entenderieis. Sois excellentes pessoas para devorar um romance em dez volumes; mas não lerieis, sem abrir tres vezes a bocca, uma pagina de sentimentos embalsamados do aroma do céo, que o poeta não deve nunca profanar, misturando-os a frioleiras d'uma historia, ao alcance de todas as capacidades. Eu creio que entre vós ha entendimentos muito finos, paladares muito apurados no sabor do bello, corações muito brandos para emoções suaves. Creio que sim; mas o melhor é fazer de conta que os não ha. V. Minutos depois, achava-me n'uma povoação, onde nunca estivera. Encontrei uma velha que castigava um porco, rebelde á invocação de sua ama, com uma roca. Perguntei-lhe que povo era aquelle. --Alpedrinha--disse ella. Ora, Alpedrinha distava duas leguas e meia de minha casa. Era necessario pernoitar alli. Perguntei á dita velha onde morava o parocho. Mostrou-me a casa. Pedi gasalhado ao reverendo, que n'esse momento voltava da igreja. Disse-me que subisse. Quiz saber quem eu era, e tratou-me delicadamente, quando lhe citei um medico, pessoa de minha familia. O snr. padre Joaquim era um padre admiravel. Tinha maneiras da côrte. Vestia com muita limpeza. Fallava com prodigiosa correcção, e offerecia aos seus hospedes aguardente e biscoutos, tudo do melhor, e servido em bons crystaes e polida salva de prata. Momentos depois que eu chegára, apeou á porta do meu sympathico sacerdote um cavalleiro, ainda moço, muito pallido e magro, com chapéo hespanhol, faxa vermelha, e botas d'agua. Era um estudante de Coimbra, que voltava doente para sua casa, e costumava pernoitar em Alpedrinha, com aquella familia. A primeira pergunta do academico foi esta: --Como está a snr.^a D. Amelia? --O mesmo...--respondeu padre Joaquim. --E seu mano? Tem vindo a casa? --Não senhor: desde que foi delegado para * * *, ha tres mezes, não voltou.... Eu estava ancioso por conhecer a snr.^a D. Amelia, porque até ao momento em que o estudante chegou, suppunha eu que toda a familia do parocho se limitaria a alguma ama, e alguns pequenitos, que, de ordinario, são afilhados do padre. Depois das perguntas do meu illustre companheiro de hospedagem, fiquei sabendo que n'aquella casa existia uma snr.^a D. Amelia, e um senhor delegado de * * *. Padre Joaquim contou ao academico as minhas aventuras de caçador; disse-lhe que me tinha achado muito fino (referia-se naturalmente á magresa), e fez a apologia dos meus olhos, que, naturalmente, revelavam uma extraordinaria esperteza, espiritualisados pelo espirito de vinho, que o sacerdote me injectou nas veias marasmadas pelo frio. Conversei com o academico. Perguntei-lhe muitas cousas de Coimbra: quantos canellões soffria um calouro; o calculo aproximado dos puxões de orelhas; a solemnidade indecente de certo vaso na cabeça.... &c. &c. O academico respondia-me com muito agrado, e offerecia-se para meu protector em Coimbra, no anno seguinte, que devia ser o da minha partida. VI. --Snr. Valladares--disse o padre ao estudante--minha cunhada ergueu-se da cama para vir comprimental-o... --É uma grande consideração, que eu lhe não mereço; mas a delicadeza da snr.^a D. Amelia é sempre um severo preceito que ella se impõe. Fallou bem. N'isto, entrou uma senhora, com um ar de tanta nobreza, que me pareceu uma cousa nova. Eu não conhecia assim nenhuma. Era alta, muito magra no rosto, mas muito bella nos olhos, nos labios, nos cabellos, em tudo se via tanta formosura, tanto donaire, um senhoril tão estreme do vulgo, que eu, creança e poeta, senti-me tão acanhado como o mais boçal dos pastores de cabras d'aquella freguezia. --Como passou, snr. Valladares?--perguntou ella com voz tremula, tossindo a cada palavra, e aconchegando da face a golla de veludo da sua capa. --Sempre doente, minha senhora... Por não poder mais, recolho-me a casa... --Eu bem lhe disse que não fosse... v. s.^a teimou, agora já sabe que os conselhos d'uma mulher não são sempre pieguices... --E os de v. exc.^a nunca poderão sêl-o... E a snr.^a D. Amelia como está? --D'este modo que vê... Tossindo sempre, sempre mal, sem descanço d'este lado, que me parece que já não vive, se não para matar o resto de vida que tenho... D. Amelia indicava o coração. --Porque não dá um passeio até Lisboa?--tornou o academico. --Isso lhe tenho eu dito todos os dias--atalhou o padre. --De que me serve Lisboa? --São ares patrios, minha senhora. Talvez o contacto do coração com as suas amigas de collegio... --Eu já não tenho coração para contacto com amigas nem inimigas, snr. Valladares... --O que v. exc.^a tem é uma ardentissima imaginação, alma de poeta, que só tem a sensibilidade do que é triste, e não sabe tirar recursos da esperança... --Esperança!...--murmurou ella com um triste sorriso, e voltando-se para mim, perguntou-me: --Já sei que este senhor esteve em risco de passar uma noite divertida com os lobos... --É verdade, minha senhora; mas a Providencia encaminhou-me ao paraizo, depois de me ter mostrado o inferno. --Ora ahi tem uma resposta d'um moço, que seria pena comerem-no os lobos!...--disse o padre, desafiando um gracioso sorriso de Amelia. --Ha-de dizer ao seu parente medico que me salve da sepultura assim como nós esta noite o salvaremos de ser victima dos lobos--disse-me ella, apertando affectuosamente a mão de Valladares, em despedida, porque a tosse exasperava-se cada vez mais. Esta rapida apparição impressionou-me muito. Queria fazer mil perguntas; mas eu não tinha a quem. O padre e o estudante fallaram em assumptos, que me não interessavam nada. O que eu queria era a vida, a historia, os soffrimentos, a poesia d'aquella mulher. Eu tinha lido, dias antes, não sei que romance, onde vira uma mulher assim... Appareceu um taboleiro com a cêa. O abbade fez o prato de D. Amelia. Era uma aza de gallinha, que elle mesmo lhe serviu. Valladares tambem comeu do pucaro da doente. Eu, com o abbade, entramos corajosamente n'um coelho guisado, cuja retaguarda cortamos com um excellente caldo verde, e lourejantes castanhas assadas com manteiga. No fim, demos graças a Deus. O padre, segundo o seu costume, foi sentar-se á cabeceira de sua cunhada. Eu e Valladares entramos n'um quarto commum. VII. O academico tinha uma physionomia franca e insinuante. Conversava comigo sem desdenhosa superioridade. Familiarisamo-nos depressa, como dous futuros companheiros de casa em Coimbra. Eu fui um grande fallador, n'aquella idade, em que pensava menos. O meu recente amigo sympathisou com a minha garrula eloquencia, e dava signaes de desenfado, quando naturalmente devêra querer dormir, depois de uma fatigante jornada, em dia de neve. Eu não era rapaz que, por delicadeza, calasse a minha curiosidade a respeito de D. Amelia. --O senhor faz-me o favor de me dizer uma cousa?--disse eu. --Que é? quantas horas são?... são 10... quer dormir? --Não, senhor: queria saber quem é esta snr.^a D. Amelia? --É cunhada do padre, e casada com um sujeito, delegado em * * *. --Isso já eu sabia... pouco mais ou menos. --Então sabe tanto como eu... --Mas é d'aqui d'esta aldêa esta senhora? Creio que ouvi dizer que era de Lisboa. --É verdade... nasceu em Lisboa... --E como veio parar aqui n'este matagal? Naturalmente perdeu-se, como eu, na serra, por causa da neve, e veio cá bater, e cá ficou! Pois eu dou-lhe a minha palavra de honra, que apenas vir luzir o buraco, retiro-me sem mais ceremonias d'este delicioso covil de cabras. O meu amigo ria-se. Estava disposto a achar-me graça, e o leitor póde tambem rir-se, se lhe aprouver. E acrescentou ao sorriso: --Parece-lhe impossivel que a tal senhora viesse de Lisboa para aqui sem ser impellida por um acaso? --De certo... Já não admira que ella tenha tosse de tisica... O que me espanta é ella viver, se cá está desde hontem!... Quando veio ella? --Ha dous annos. --Então é eterna... ou santa. Hei-de dizer que encontrei esta martyr a uma minha tia, que é capaz de jurar que a viu fazer milagres... --O menino é sarcastico! Se o não visse tão inclinado a rir-se de cousas serias, contava-lhe uma historia triste... --E eu gosto muito de historias tristes... Verá que me não rio, quando me dizem alguma cousa que me toque o sentimento. A minha familia chama-me poeta; os visinhos chamam-me tolo; não sei bem o que sou; mas o que não sou é insensivel... Vê... já não tenho vontade de gracejar... Conte-me agora a historia, que eu prometto contar-lhe outra que me fez chorar, porque é uma passagem tão infeliz, que, se eu fizesse novellas, escrevia uma. --Talvez as escreva no futuro... --Eu?... Deixe-se d'isso... O meu mestre de logica diz que eu sou um alarve, e o de rhetoria já me mandou ser aprendiz de alfaiate... Não tenho habilidade nenhuma. O meu gosto é lêr os sonetos do abbade de Jazente, e as quintilhas do Nicolau Tolentino. Não sei mais nada, nem quero saber... Vamos á historia, sim? --Então aproxime-se de mim, que eu quero fallar baixo. Mas, antes de mais nada, promette não contar a ninguem o que vou dizer-lhe? --Pois é segredo! --É. --Prometto... --Pois ahi vai. VIII. --Esta senhora viveu em Lisboa até aos dezeseis annos. Hoje o mais que póde ter são vinte e dous. --Só?! Eu calculava trinta e tantos _bons_, como diz minha tia, quando quer fazer todas as pessoas mais velhas que ella. --Pois deixemos lá sua tia, que deve ser, pouco mais ou menos, como todas as tias... Vamos com a nossa historia, e depressa, senão adormeço, e o meu curioso amigo perde a occasião de saber quem é a snr.^a D. Amelia... --Isso de modo nenhum--atalhei eu com sobresalto--Prometto não interromper a historia. --Pois bem. O pai d'esta senhora morreu em Lisboa, e o conselho de familia deliberou que a orphã viesse para a provincia, onde tinha tios, e o seu patrimonio em quintas. Quando appareceu em * * *, os rapazes fizeram-lhe montaria, e disputaram a primazia no namoro. D. Amelia não aceitava, nem repellia a côrte de nenhum. Tinha o mesmo riso para todos, e fallava a todos com a mesma delicadeza. Havia alli um rapaz que não frequentava a sociedade de Amelia, porque não frequentava sociedade nenhuma. Fôra educado em Genova, viera de lá aos quinze annos, vivera no Porto até aos vinte e cinco, e quando recolheu á provincia, d'onde sahira de tres annos, com a sua familia que emigrára em 1828, ninguem o conhecia, e elle mesmo não queria conhecer ninguem. Chamavam-lhe celebre, exquisito, excentrico, orgulhoso, impostor, e não sei que muitas outras lisonjas do charco de certos espiritos, que não podem sahir da pequena esphera de lama, que a natureza lhes deu por homenagem. D. Amelia viu este rapaz n'um cemiterio: leu um epitaphio que elle mandára abrir na sepultura de seu pai que o deixára em Genova no collegio, e viera morrer em 1836 á patria: comprimentou-o de passagem, respondendo a um distincto cortejo do melancolico poeta; e parece que, desde esse encontro, Amelia transfigurou-se para todos os homens, deu que pensar á sua familia, queria todos os dias visitar o cemiterio, e retirava quasi sempre mais triste, porque muito raras vezes encontrou alli o invisivel extravagante da opinião publica. --Como se chamava elle? Eu conheço alguns rapazes de * * * que foram meus condiscipulos em logica. --Não é nenhum dos seus condiscipulos. Já lhe disse que este sujeito veio do Porto para a provincia, com vinte e tantos annos pelo menos. O seu appellido é Côrte-Real, conhece? --Nada, não conheço; mas ouço fallar todos os dias n'esse rapaz. --Que ouve dizer? --Que está em Lisboa, doudo, no hospital... --O senhor afiança-me isso? Ha que tempo endoudeceu? --Ha dous ou tres mezes... --Quem lh'o disse? --Um medico, meu parente, que o mandou conduzir para a enfermaria dos doudos. O academico fez-me signal de silencio, e mandou-me ouvir. --Não ouve?--disse elle. --Ouço... é alguem que soluça... --É ella... --D. Amelia? --Sim... Ouviu a nossa conversa... Tem ouvidos de tisica... --É admiravel!... Pois o quarto d'ella não é longe d'este? --Passam-se tres quartos, mas os repartimentos são de tabique, e eu não me lembrei de tal... Calemo-nos... --E a historia?... Falle mais baixo, que ella não ouvirá mais nada... --Agora, é impossivel... Aquelles soluços transtornaram-me a cabeça... Deite-se, e ámanhã fallaremos antes de nos despedirmos... IX. Á cabeceira do meu leito, estava um volume das _Viagens de Cyro_, e o quinto volume d'uma _Miscellanea curiosa e proveitosa_, onde encontrei uma longa poesia a _D. Ignez de Castro_, que me fez dormir até ás 8 horas da manhã. O meu companheiro, quando abri os olhos, estava sentado na cama, e escrevendo nas paginas d'uma carteira. --O senhor está a fazer versos?--perguntei eu. --Adevinhou. --Faz favor de recitar, se não é segredo! --Recito: olhe lá se entende: _Eras um anjo? Se o eras Que torvo facho do inferno Te queimou as azas? Diz: Porque, tão cedo, infeliz Cahes no abysmo eterno_!... ETERNO! --Entendeu? --Não, senhor. --Veja se entende agora: _Eras pura, quando lagrimas Tu me déste, e me pediste... Tu choraste aqui, choravas... Mas porque? prophetisavas Este abysmo em que cahiste?_ --Entendeu? --Nada... Ora diga-me os versos tem alguma cousa com a historia que ficou suspensa? --Não, senhor; pertencem a outra, que nasceu aqui n'esta casa, e que é toda minha... --Esta casa parece-me uma casa de novella... Estou a vêr se aqui arranjo tambem alguma historia para contar a minha tia, que está resando o quadragesimo responso a Santo Antonio por minha causa, se é que já me não resou por alma... Então o senhor não conta ao menos a primeira historia completa? --Hei-de contar. --Quando? Eu vou-me embora logo. --Não vai. Já aqui esteve o padre, e disse que não sahiriamos d'aqui hoje, porque augmentou de noite a neve. --Deixal-a; mas a minha familia, se eu não appareço, nem dou parte de mim, julga-me morto, e é capaz de me fazer officio de corpo ausente. --Não se assuste, que o padre hontem á noite mesmo fez partir para a sua aldêa um criado com a certeza de que o senhor ficava vivo, e mais o seu furão. --A proposito, sabe se já dariam de almoçar ao meu furão. --É natural que sim... Ahi vem o snr. abbade; perguntemos-lhe... Snr. padre Joaquim, pergunta alli o nosso amigo se o furão ja almoçou. --Comeu quatro ovos, e está agora brincando com minha cunhada, que é muito amiga de bichos. --E como passou ella?--perguntou Valladares. --Penso que melhor... Ergueu-se muito cedo: a creada disse que a vira chorar toda a noite; mas agora fui, com grande espanto meu, encontral-a com o furão no regaço, a sorrir-se como quem é muito creança e muito feliz... Sabe o senhor que... Não sei bem o que o padre disse ao ouvido do estudante. Desconfio, pela resposta, que o resto do segredo era o receio de que ella endoudecesse. Tudo isto, apurava-me o desejo de saber o que era a demencia de Côrte-Real, e a tisica de Amelia. X. Almoçamos. D. Amelia esteve comnosco alguns minutos, ouvindo não sei que palavras a meia voz, do meu amigo, inintelligiveis para mim, supposto que ahi se fallasse duas ou tres vezes n'uma D. Miquelina. Tudo mysterios! O padre foi dizer missa. D. Amelia foi com elle. Fiquei com Valladares, tremendo de frio, ao pé d'uma bacia de brazas. O attencioso levita teve a delicadeza de nos não convidar a participarmos da sua missa, que n'aquelle dia, com tal frio, faria hereges espiritos devotos. --Ahi vai agora a continuação da historia--disse o academico, engulindo o fumo de quatro cigarros successivos--A familia d'esta senhora é muito realista, muito fanatica, arde em odio contra os impios, que são todos, menos os sectarios de D. Miguel, e alguns, senão todos, de D. Sebastião. A familia de Côrte-Real é ultra-liberal, odeia os realistas com aquelle odio saturado na emigração, e não admitte honra, intelligencia, nem merecimento em homem que não fosse capaz de cortar as orelhas a um miguelista, se elle estiver por isso. Já vê que as duas familias detestam-se. De parte a parte no momento em que as relações de Amelia com Côrte-Real fossem percebidas, imagine o meu amigo que não hiria! --Então elles namoravam-se? --Pois eu não lhe disse já que sim? --Não, senhor: disse-me que Amelia passeava repetidas vezes no cemiterio para vêl-o, mas que não o via muitas vezes. Eu queria saber como se encontraram... porque... desejo saber como é que a gente póde sahir d'um encontro d'esses!... Não ha muito que me vi entalado com um d'esses encontros... Eu tinha o recado na ponta da lingua, e, quando vi a mocetona, que não era cousa de atarantar um estudante de logica, pegou-se-me a lingua ao céo da bocca, como diz não sei que poeta... _vox faucibus hoesit_... Que lhe disse elle quando a viu? --Isso é que eu não sei, porque não ouvi. O que sei é que se fallavam por cartas, e entretiveram assim relações seis mezes. Por fim, descobre-se o namoro. Côrte-Real fallava da rua para a janella com Amelia: um tio d'ella é avisado; espera-o no pateo, com a porta fechada, e, quando elle principia a dizer bellas cousas, o tal bruto abre a porta, e descarrega-lhe quatro bordoadas, que o pozeram fóra do combate. No dia seguinte, mandou-lhe a casa a capa, o chapéo, e uma clavina, que fôra tres vezes batida á queima roupa do tal varredor de feiras. --E depois? --D. Amelia, duas horas depois, foi mandada entrar n'uma liteira, e conduzida a casa d'este padre. --Para que? --Para ninguem saber o seu destino, em quanto vinha de Lisboa, onde ella tinha o conselho de familia, uma ordem para ser recolhida a um convento. --E Côrte-Real que fez? --Curou as feridas da cabeça, e indagou o destino de Amelia. Como o não soube, cahiu n'uma melancolia profunda, teve accessos de loucura, e, pelo que o senhor me disse, está hoje no hospital de Rilhafolles. --E Amelia casou-se? --Pois no casamento é que está o interessante da historia. Quinze dias depois da sua vinda para aqui, chegou de Coimbra o irmão do padre. Parece que sentiu por Amelia o que era muito natural que sentisse. Amou-a, mas não ousou declarar-se, porque sabia os precedentes, que a trouxeram a esta casa. Ella, por si, tractava-o com a fria delicadeza da indifferença, até ao momento, em que recebeu de uma sua tia a noticia de que viera ordem do conselho de familia para ser conduzida a Lisboa, e lá recolhida em um convento. Lida a carta, Amelia offereceu-se como esposa do bacharel. O imprudente sem mais nem menos, aceitou a offerta. Alcançou do arcebispo dispensa de banhos e consentimento do tutor: o irmão, sem consultar a philosophia, a religião, e a consciencia, casou-os. Na tarde do dia das bodas, chegou a liteira que devia levar a orphã a Lisboa. Amelia apresentou-se a seu tio com um desdenhoso sorriso, e disse: «Não tenho duvida nenhuma em hir para Lisboa, e para um convento, mas é necessario que meu marido vá comigo.» --Seu marido!--exclamou o tio estupefacto. --Meu marido... aqui lh'o apresento. XII. --Dias depois, esta victima dos seus caprichos, cahiu doente. O medico capitulou-lhe a enfermidade de tisica no primeiro grau. O marido arrependeu-se muito cedo. Ella não se arrependeu, porque sabia que dava um passo que devia matal-a. E, com effeito, está alli... está morta... ...Ahi vem ella e o padre... Fallemos d'outra cousa... ........................................................................... ........................................................................... CONCLUSÃO. Um anno depois, em Coimbra, dizia-me Valladares: --Olha que tive carta do abbade de Alpedrinha. D. Amelia morreu, e as suas ultimas palavras ao marido foram estas: MORRO POR CAPRICHO. UMA PAIXÃO BEM EMPREGADA. UMA PAIXÃO BEM EMPREGADA. I. O meu amigo Valladares, em uma tarde formosa, passeando comigo no _Penedo da Saudade_, sentou-se, accendeu um cigarro com perfeição academica, abriu a carteira, e recitou-me os versos, que, um anno antes, me recitára em Alpedrinha. --Lembras-te?--disse elle. --Perfeitamente. Prometteste contar-me então uma historia. --Vou cumprir a promessa. --E disseste que o teu conto prendia muito com aquella casa. --Disse, e vaes vêr porque. Olha que eu não vou fazer estilo. Prepara-te para uma narração simples, e clara. Não pertenço á escóla dos nossos lapidarios de palavras, que nos dizem em estilo de Corneille as scenas comicas de Moliere. A minha historia, se tal nome lhe cabe, é uma tragedia com muitas scenas de farça. Ainda que me não vejas rir, tens a liberdade da gargalhada. Ahi vai: Em 1843 fui á feira do Santo Antonio a Villa-Real. Encontrei ahi uma familia que mora uma legua distante de minha casa. Compunha-se d'uma senhora idosa, que era mãi d'um cavalheiro, e este cavalheiro era pai d'uma bonita mulher, que teria dezoito annos. Gostei d'ella, ou antes confirmei a sympathia que ella me tinha presa desde que a vi, pela primeira vez, dous annos antes, n'umas ferias grandes. Não lhe disse quasi nada. Eu era rapaz de dezoito annos, e, aos dezoito annos, um moço d'aldêa tem o coração acanhado, e córa facilmente, quando encontra os olhos d'uma mulher, supposto que os veja constantemente em sonhos. A rapariga chamava-se Miquelina; isto não faz ao caso; mas sempre te digo que nunca suppuz poder pronunciar este nome sem lagrimas... O que é o tempo!... Combinamos partir juntos de Villa-Real. Não recordo na minha vida um dia mais feliz do que o dia da nossa partida! A familiaridade animava-me a dizer algumas palavras d'aquellas que nunca exprimem senão a sombra do sentimento. Miquelina corava, mas nem por isso sustinha as redeas do cavallo para esperar a avó e o pai, que vinham alguns passos distantes. Teriamos andado legua e meia, quando o macho em que vinha montada a velha tomou susto d'um tiro, que se deu ao lado da estrada, recuou, e deu em terra com a pobre senhora. Acudimos todos. Encontramos-lhe uma fractura profunda na cabeça, e uma perna quebrada. Perguntamos se d'alli perto haveria uma casa onde nos recolhessemos. Encaminharam-nos a Alpedrinha, e a casa era a do padre onde me encontraste. O acolhimento que nos deram foi excellente. Encontrei ahi o irmão do abbade que era meu contemporaneo em Coimbra. Os facultativos disseram que era impossivel continuar jornada, e ahi ficamos vinte dias. N'este espaço de tempo, sonhei a felicidade, por que hoje sei que não existe a realidade d'esses sonhos. Fui muito feliz, senti-me poeta, idealisei á sombra de Miquelina cousas e pessoas que nunca tiveram senão materia vilissima para as aspirações do poeta. Em fim, meu caro, cheguei a recuperar a fé perdida nas cousas da Providencia, porque me parecia impossivel tanta felicidade sem consentimento especial da Providencia. Disse a Miquelina tudo que humanamente póde dizer-se. Traduzi-lhe em palavras os extasis, que as não tinham. Interessei-a na comprehensão da minha alma, e arranquei-lhe uma palavra, que mil vezes lhe morrera nos labios, como queimada pelo ardor do pejo. Quando ella me disse «amo-o» se não endoudeci de contentamento, é porque a disposição do meu cerebro é invulneravel aos golpes da demencia. Hoje rio-me d'isto, e tu, se te não ris, agouro-te que não poderás dizer o mesmo a respeito da tua cabeça, passados alguns annos. --Porque? --Porque das duas uma: ou doudo, ou cynico. Tomar a serio a sociedade é endoudecer. Viver com ella em boa paz é escarnecel-a. Ou doudo ou cynico. Não enlouqueci; mas depravei-me. Este escarneo, que indistinctamente voto a tudo, é a negação da piedade para todas as dôres nobres, e a do odio para todos os prazeres infames. Não me espanta nada. Aperto a mão do mais corrupto, e a do mais virtuoso com a mesma graça. Recebo todos os desaforos como factos consumados. Não dou dez reis pela virtude dos missionarios do Japão, nem daria cinco de volta se elles me trocassem a sua fé pela minha illustrada impiedade. Eu e elles somos bons, ou maus: como quizerem. Eu acho que todos somos excellentes filhos de Deus, e Deus, que nos conserva, lá sabe a razão porque o faz... --Tu não sentes o que dizes... --Estás a brincar comigo!... Pois não sinto o que digo?! Tu não vês o que está dentro d'este homem, nem pódes ainda ajustar á face do cadaver a mascara que o retrate... --Mas é possivel ser-se o que tu és?! --Se é!... Se me não tivesses interrompido, já sabias a razão porque o sou... Nada de interrupções... Se começo a divagar, digo diabruras, perco-me em abstracções, que te hão-de parecer pretenciosas, e lá vai a historia... --Palavra, que não te interrompo... --Quando sahimos de Alpedrinha, as minhas intimidades com Miquelina eram já suspeitas ao pai, que não se entremettia paternalmente no negocio. Sabes que eu tenho uma soffrivel casa, e Miquelina não era muito mais rica. Era possivel, e até vantajoso um casamento. Murmurou-se n'este assumpto em casa do padre, e eu fui consultado por elle. Isto arrefeceu-me um pouco. Não queria que me viessem tão cedo direitos ao materialismo. A pequena, porém, não tinha culpa. Eram cousas da velha, que quebrára a perna, mas ficára com a alma inteira para seguir o recto caminho, a logica implacavel do namoro, banhos, casamento, filhos, aborrecimento, barrete de dormir, catarrho, cangalhas no nariz, e rheumatismo. Eu amava verdadeiramente Miquelina. Instado pelas perguntas do officioso abbade, respondi que me casaria um anno depois, porque não queria dar tal passo sem o consentimento d'um tio, que fôra receber ao Brazil uma herança, que viria augmentar consideravelmente a minha casa. Ficamos n'isto. Tres vezes por semana, durante os dous mezes de ferias, visitei Miquelina, e revalidei os meus votos, porque esta paixão não era das que fogem quanto mais faceis se aproximam. A minha Beatriz parecia-me boa de coração, ajuizada de cabeça, fina de espirito, e em quanto á cara, ao corpo, e ao donaire... dir-te-hei que as seducções eram tantas, e tão a proposito que nunca tive occasião de me sentir de uma illusão desvanecida. Vim para Coimbra. A nossa despedida foi pathetica. Beijei-lhe a testa pela primeira vez. Comprimi-a ao coração com o enthusiasmo do primeiro abraço. Recebi da sua mão tremula, como prenda, o lenço com que enxugára as lagrimas, e retirei-me com o coração partido, mas vaidoso de esperanças, que a saudade me dourava no meu lindo futuro. Logo que aqui cheguei, escrevi-lhe. Imagina o que eu lhe diria! Eram vinte folhas de papel, escriptas em todas as estalagens onde pernoitei, e fechadas com uma especie de hymno de lagrimas, em que se me foi tudo o que a minha alma podia dar de superior áquillo que todos os homens sabem dizer n'uma carta de namoro. Respondeu-me. A sua carta era simples, mas os toques eram verdadeiros... pareciam-no... via-se alli a mulher que escreve a primeira carta, o coração timido que balbucia os sons d'uma selvagem innocencia, que é a felicidade do homem que primeiro os tira do coração d'uma virgem. Tres mezes assim. Tres mezes d'uma vida phantastica. Ancias insaciaveis das suas cartas. Tristezas dôces quando me faltavam n'um correio. Zangas sem odio, se o coração de tão longe a criminava de ingrata. Tres mezes assim... e no fim de tres mezes... adevinha o que aconteceu... --Eu sei cá... morreu? --Não. --Veio cá ter comtigo? --Não. --Abandonou-te? --Abandonou. --Isso é incrivel! --Acredita. Agora adevinha por quem eu fui preferido. --Eu só te conheço a ti na tua terra... --Imaginas que algum dandy a requestou de modo que a fragil creatura succumbiu ás seducções invenciveis? --Só assim. --Ora adeus! Tu não adevinhas, porque não sabes nada de mulheres... --Foi o pai que a forçou a casar-se com algum brasileiro muito rico?... --Tambem não... --Diz lá isso, que estou impaciente... --Pois lá vai: a minha querida Miquelina, o meu anjo que corava se o meu halito lhe roçava nas faces, a minha pudibunda Virginia que recebeu o meu primeiro beijo a tremer, a minha mimosa sensitiva que parecia resequir-se á mingoa dos meus carinhos... sempre queres que te diga? --Pois então? --A minha promettida esposa... fugiu com um... digo? --Acaba, homem! --Com um lacaio da casa!... Ólá! não fiques assim atordoado! Rite, como eu... --Isto é inconcebivel!... E depois? --Depois... que queres que eu te diga? --Que fim teve essa mulher? --Foi agarrada por ordem do pai, e o lacaio morreu arcabusado summariamente para não dar que fazer á justiça. --E ella... vive? --Creio que sim. --Na companhia da familia? --Não... Tu não me disseste que viras no Porto... Fiquemos aqui... --Isso de modo nenhum... Has-de concluir... --Pois sim... que importa!... Não me disseste que viste no Porto uma meretriz que revelava uma boa educação, e não queria dizer d'onde era, nem como viera áquella vida?... --Disse... mas não se chamava Miquelina... --Isso não faz nada ao caso... Rosa, ou Miquelina, é a mesma... é a minha promettida esposa, é o anjo dos meus primeiros amores, é a pomba alvissima da innocencia que encontrei em Alpedrinha... É ella... Basta... É noite... Vou fazer monte, e depois, se te quizeres embriagar comigo, vamos ao _Paço do Conde_, e beberemos á saude da exc.^{ma} Miquelina Alpoim e Malafaia, victima d'uma paixão pelo infeliz lacaio, que desceu ao tumulo... das illustres victimas. Já sabes como se faz um cynico? A esses parvos, que por ahi andam a gaguejar um scepticismo que cheira a cueiros, dá-lhe com uma palmatoria. E não tornou a fallar-me n'esta mulher. DE ABYSMO EM ABYSMO. Eu é que não podia satisfazer a minha curiosidade com a descosida revelação de Valladares. Muitas vezes acalorei a questão do cynismo, applicando-a a Miquelina; mas este nome enfurecia-o de tal modo, que as nossas relações estiveram a romper-se, e reataram-se com a condição de eu nunca lhe tocar ligeiramente em semelhante assumpto. Sujeitei-me; mas, na primeira occasião prosperada pelo acaso, alcancei esclarecimentos, que illucidam a degradação da pobre mulher. Em 1848, Miquelina vivia ainda no Porto. A sua vida já a sabem. Como veio ella tão abaixo? Foi assim: Alguns dias depois da fuga vergonhosa com o defunto lacaio, Miquelina foi conduzida a Lisboa. A avó, que pôde sobreviver ao golpe, quiz salvar a neta da colera do filho. Este ausentára-se para Chaves, no momento em que a filha entrára em casa. De lá, escrevendo á mãi, dizia-lhe que désse á infame algum destino, porque, em quanto a sua presença envergonhasse aquella casa, nunca elle tornaria alli. D'aquella familia estava em Lisboa um magistrado, tio materno de Miquelina. Foi este o encarregado de recebêl-a durante alguns mezes na sua casa. Não se passaram muitos dias, sem que Miquelina revelasse os seus instinctos. Namorava escandalosamente um homem, sem nome, que frequentava as janellas d'um alfaiate, que morava em frente. O magistrado suspeitou, e prohibiu-lhe o uso das janellas. O homem, que, por força, havia de ter um nome, e poderia muito bem chamar-se José Maria, não era tão escasso de meios que não comprasse um creado da casa. O creado era o intermedio da correspondencia, menos da ultima carta, surprehendida pelo magistrado. Esta carta authorisava José Maria a empregar a força judicial para tirar de casa Miquelina. N'esse mesmo dia, a perigosa «donzella» foi mudada para casa de um general, cunhado de seu tio. O general era solteiro, homem de cincoenta e tantos annos bem conservados, admirador das boas mulheres, e vigoroso ainda para não desmentir o culto, quando se lhe pedissem provas praticas das theorias um pouco irrisorias na sua idade. Tinha comsigo duas irmãs, mais novas, que, _mutatis mutandis_, professavam as idêas do irmão. Dito isto, vê-se que a casa, onde Miquelina foi reclusa, era um viveiro de moral. Foi bem recebida, e até muito bem aconselhada. As irmãs do general fallavam muito da virtude, e da honra. Quem as não conhecesse, acrescentaria duas martyres ineditas ás onze mil virgens conhecidas, de que Byron duvidou, e eu não me sinto muito propenso a acreditar, nem o meu amigo Valladares. O José Maria não sei que fim levou. Seria algum d'esses quatro que em 1845 se precipitaram dos «Arcos das Aguas-livres!?» Se foi, não andou bem, porque fez as cousas de modo que ninguem falla d'elle. Os _Werthers_ sabem escolher as occasiões, senão... é melhor deixarem-se morrer de tedio, que é a morte que me espera a mim, e a ti, leitor, no fim d'este livro, se não morreres no meio. O general namorou Miquelina. Namorando-a, seduziu-a. Seduzindo-a, abriu-lhe a outra meia porta da corrupção. Porque foi assim que as cousas se passaram: Miquelina affeiçoou-se ao general, como se affeiçoára a Valladares, ao lacaio, e ao José Maria. Trazia o cunho da perdição! Era uma d'estas desgraçadas que a gente vê cahir, cahir, cahir a despeito de todos os estorvos! Que Deus, ou que demonio imprime o movimento n'estas machinas, sem coração nem cabeça? Não se sabe! A verdade é que eu sinto vontade de chorar essas victimas cegas d'um destino barbaro, e tenho furias de blasphemo quando me dizem que Deus se entremette nas cousas d'este mundo... Vamos adiante, senão atiro a penna fóra, e rasgo o papel... Ora já vedes que o general era um devasso, e a pobre menina deve merecer-vos uma pouca de compaixão, se eu vos afianço que o amou, até ao ciume. Disseram-lhe um dia que uma mulher de capote e lenço entrára no quarto do general, que era ao rez da rua. Miquelina estava doente de cama. Ergueu-se com febre, vestiu-se precipitadamente, desceu as escadas cambaleando de fraqueza, escutou á porta do traidor, e ouviu risadas, e palavras obscenas. Era noite, quando isto se passava. As irmãs do general deram pela falta da hospeda, e desceram a procurar o irmão. Miquelina, quando as sentiu, na incerteza do que devia responder-lhes, fugiu. Fugindo, achou-se n'uma rua que não conhecia, atravessou umas poucas, chegou a uma praça onde encontrou umas mulheres esfarrapadas que a tractaram por tu, e fugiu até deparar as escadas d'uma igreja, onde um soldado lhe veio dizer palavras desconhecidas. Fugiu ainda; mas a desgraça corria a par d'ella. O frio da noite, e a febre do coração aniquilaram-na. Sentou-se n'um portal, e desmaiou. Uma patrulha deu-lhe com a ponta do pé, e a desgraçada não respondeu. Tomaram-na como bebeda, e foram seu caminho. Outra patrulha sacudiu-lhe a cabeça pelos cabellos. Miquelina gemeu, abriu os olhos, e pediu erguendo as mãos que a deixassem morrer. Estava perto do hospital de S. José. Os soldados pediram soccorro ao proximo corpo da guarda, e mandaram-na para lá. No hospital, deram-lhe uma cama na enfermaria... não sabemos que enfermaria; mas parece que o facultativo, na visita de manhã, mandou retirar a mulher para um quarto particular, pago á sua custa. Que foi o que ella disse ao medico? Nada. Seria n'elle um arrojo de caridade? Não. «Pois não tens uma palavra boa para explicar uma acção nobre?» Nobilissimos leitores, deixai-me suppôr que sois melhores pessoas que o medico. O que elle queria era uma creada, com as feições de Miquelina. As despezas da cura, além de ficarem encontradas no seu ordenado, seriam pequenas. Uma febre benigna não resistiria ao tratamento de oito dias. Mas, ao setimo, Miquelina fugiu do hospital, favorecida pela enfermeira, em cuja casa foi residir. Desde esse dia, chamou-se Rosa. ........................................................................... ........................................................................... --Que bonita rapariga é aquella que está em casa da A * * * na calçada do Duque? --É uma rapariga da provincia, pela pronuncia: chama-se Rosa, mas não diz d'onde é, nem quem a trouxe alli. --Parece bem educada! --Parece... e não é desbocada... Não tem ainda a consciencia do seu officio... É necessario que perverta a linguagem, se quizer celebrisar-se... --De quem fallam vossês?--disse um terceiro, que, na Praça do Rocio, veio associar-se ao grupo. --D'aquella Rosa, que tu denominaste um _cherubim precipitado_ na tua poesia. --E é... --É!... pois tu sabes a vida d'ella? --Sei... --Contas? --Não... Este terceiro era Valladares. Teve elle coragem de vêl-a face a face? Não teve: entrou alli com uma mascara na terça feira de Entrudo. Conheceu-o ella? Conheceu: porque no dia immediato desappareceu de Lisboa. É por isso que eu a vi no Porto em 1848... ........................................................................... O general é hoje conde. O menos torpe dos florões da sua corôa é este... Foi _honrado e hospitaleiro_!... Valladares embriaga-se todos os dias, e não póde assim viver muitos mais, porque já não sente no paladar o acido do cognac. E Miquelina? Ha mais de seis annos que os estudantes da escóla medico-cirurgica do Porto a retalharam fibra a fibra com os seus escalpellos observadores. Já vêdes que morreu no hospital, e foi em pedaços atirada ao monturo da santa casa, depois de se prestar, como cadaver, ás lucubrações da anatomia. Podeis não acreditar tudo, ou parte d'isto... Olhai, porém, que vos não dei aqui a verdade descarnada como ella é no conto melindroso, que vos contei. Escondi-vos metade. AVENTURAS D'UM BOTICARIO D'ALDÊA. AVENTURAS D'UM BOTICARIO D'ALDÊA. O snr. Manoel Pires, pharmaceutico approvado por outro pharmaceutico que não foi approvado em parte nenhuma, estabeleceu a sua botica n'uma aldêa do concelho de Carrazedo de Monte Negro. O seu laboratorio chimico era um fogareiro e uma retorta de vidro, emendada no collo por um cylindro de lata. A sua livraria era o _Medico lusitano_, in folio; uma Pharmacopeia, edição de 1700; e um pequeno volume intitulado--_Segredos da natureza_. Os lotes, que eram seis, continham garrafões de barro vidrado, atapulhados de hervas, que tinham o merecimento chronologico de serem contemporaneas dos garrafões. Afóra isto, não sei que liquidos verdes e amarellos e azues variegavam um dos lotes, que, pelos modos, continha os remedios heroicos, como oleo de amendoas dôces, extracto d'amoras, solimão, e oleo de mamona. Com tantos elementos não admirava nada que o snr. Manoel Pires fosse um sabio, não digo consumado, mas superior á intelligencia d'alguns cirurgiões d'aquella redondeza. Apenas estabelecido, este filho bastardo de Hypocrates honrou as cinzas de seu pai fazendo a cura radical d'uma espinhela cahida na pessoa da snr.^a Therezinha da Fonte. Este triumpho da pharmacia sobre a espinhela elevou o snr. Pires, não direi até ás columnas do _Zacuto_, mas até onde podiam leval-o as suas aspirações de mestre Manoel Pires, como respeitosamente lhe chamavam os seus numerosos freguezes. Um segundo triumpho veio consolidar a reputação adquirida no primeiro. A cura d'uma _ostrução_, que eu não sei o que é, e outra d'umas almorreimas renitentes, não deixou nada a desejar por aquelles arredores. O snr. Manoel Pires soube tirar partido dos dotes que a Providencia lhe cedêra. Relacionou-se com o parocho, com o regedor, com o juiz de paz, e associou-se assim a um triumvirato, que decidia dos destinos da freguezia. E o que elles não fizessem dez leguas em redor ninguem o faria. Uma vez ouvi eu dizer ao tio Antonio da Pôça que o sobredito juiz de paz se correspondia com os _governos_ de Lisboa. Não posso abonar na sua integra a verdade do dito; mas não será sem fundamento a cousa, attendendo á importancia d'um juiz de paz, quando se tracta de fazer um deputado. O boticario era uma figura incapaz das honras anatomicas do romance. Tinha a cara vermelha como um molho de beterrabas. Os rofegos das bochechas cahiam-lhe em fórma de sanefas sobre os collarinhos engommados com pós de batata. As ventas eram dous vulcões que resfolegavam lavas de simonte; e, não sei porque analogia estupenda, os dentes acavallados simulavam uma Herculanum em miniatura, um destroço de pilastras e ogivas e capiteis. Como quer que fosse, o snr. Manoel Pires, aos quarenta annos, contava quarenta conquistas das melhores raparigas da freguezia. E, honra lhe seja feita, não deu nunca pasto nos soalheiros, nem consta que désse o menor escandalo. Lá como elle fazia as cousas, e a felicidade dos seus triumphos, vai o leitor ajuizar, se, em desconto dos seus peccados, quizer lêr uma pagina altamente dramatica da biographia do nosso amigo. Manoel Pires foi chamado um dia para curar uma dôr de _reins_ na pessoa da tia Maria do Eiró. Não é necessario dizer que a molestia obedeceu. Na mesma casa curou da _triz_ o tio João, e por fim talhou o _bicho_ com perfeição e felicidade á Mariquinhas, rapariga d'uma vez, e cousa de pôr a cara a um lado a mais de quatro _Antonys_ de sócos que lhe andavam por lá a regougar palavras de ternura. O leitor não saberá o que é talhar o bicho, e eu, realmente lhe digo, que não consultei o diccionario das sciencias medicas. Fiquemos com a nossa ignorancia; e eu faço sinceros votos porque nos não seja preciso nunca talhar o bicho. O caso é que o mestre Manoel Pires fallou ao coração da rapariga, e fez-lhe vibrar todas as cordas da viola de alma. Não sei se a moçoila viu archanjos, serafins, e brizas, e raios de lua a pratear lagos d'anil. O que eu sei é que a boa da rapariga achava que eram pouco os olhos da cara para vêr o snr. Manoel Pires, que, diga-se a verdade, não era sceptico, nem carpia tristezas por deshoras ao som do murmurar saudoso do sujo regato que lhe passava á porta. Felizmente para elle, o dono da casa foi atacado d'um _estalecidio_ que lhe cahiu nos bofes, segundo a opinião do boticario, e a cura demorada d'esta séria enfermidade proporcionou aos ternos amantes occasiões ditosas de se trocarem palavrinhas de pôrem o coração em maré-cheia de poesia chula. O dialogo, que mais concorreu para a solução final, foi incontestavelmente o seguinte: Elle.--O deus Cupido fez dos olhos de vm.^{ce} duas settas, que trespassaram o meu coração. Ella.--E as palavras de vm.^{ce}, como o outro que diz, são palavrinhas de mel a que não _regeste_ meu sensivel peito. Elle.--Eu bem queria dizer a vm.^{ce} as ternuras do meu coração, e as congeminencias do meu pensamento. Vm.^{ce} é mais bonita que Venus, e Cupido é o deus do amor que me derrete aos pés de vm.^{ce} Ella.--Pois se vm.^{ce} me tem amor para o bom fim o deve ter, que quem mal anda mal acaba, como o outro que diz. Elle.--O fim para que eu fallei a vm.^{ce} só eu o sei; e a troco d'esse negocio faz mingoa fallarmos outra vez. Ella.--Quando vm.^{ce} quizer, e Deus o faça para bem, que lá eu querer-lhe isso quero eu, assim Deus me ajude, e o bicho me torne se assim não é. Uma rapariga que tem seus _cretos_ não deve de perdel-os, e vm.^{ce} bem entende as cousas que é sabio e homem de cabeça, por muitos annos e bês. Elle.--E vm.^{ce} que os conte. Ora pois; o que se ha-de fazer ao tarde faça-se ao cedo. Se vm.^{ce} me der duas palavrinhas esta noite, ouvirá da minha bocca as affectiveis ternuras do meu amante coração, onde o deus Cupido cravou as mais duras settas. Ella.--Pois se vm.^{ce} promette de ter toda áquella de... sim, dizia eu, se vm.^{ce} promette de ter toda áquella... sim... como diz lá o ditado... Elle.--Pelo deus Cupido lhe prometto a vm.^{ce} de lhe não pôr a minha mão, nem palavra lhe direi que seja escontra a honra de vm.^{ce}. A resistencia da rapariga era impossivel! Quando a eloquencia, assim inspirada do intimo da alma, regorgita em jorros nos labios d'um amante, é certo o triumpho. O amor é realmente o galvanismo dos estupidos, d'esses cadaveres moraes, que se levantam do tumulo da intelligencia, e cantam lerias n'um alamiré celeste! Não nos recordamos de ter lido em romances francezes um dialogo tão fertil d'imagens, tão vibrante de affectos, tão digno, em fim, de ser copiado na carteira d'estes obtusos amadores das salas, para os quaes não ha assumpto, se lhes falharem as reminiscencias do borda d'agua. Manoel Pires retirou-se com os acicates do seu deus Cupido cravados n'alma, e foi, a toda a pressa, aviar duas tisanas, e quatro causticos para a numerosa clinica que o esperava. Sem exageração, este pharmaceutico era uma pilula de Holloway viva! Resumia todas as virtudes da revalenta arabica. Logo que o anjo da guarda,[1] não podesse salvar o enfermo das aggressões mephiticas do espirito mau, Manoel Pires, anjo sublime do charlatanismo, com dedo inspirado, apontava a enfermidade, quer na bocca do _estamago_, quer nos _bofes_ quer nos _miolos_! Este homem despresava a nomenclatura de Bichat, de Soares Franco, e de tantos outros creadores de nomes barbaros que não fazem nada á saude do cidadão. Honra lhe seja feita! O nosso homem, aviadas as receitas, tirou do bolso uma cousa enorme de cobre defumado; levantou as camadas de metal, que guardavam não sei que pythonissa magica, e, por fim de contas, era um relogio, cujo involucro suppria á farta uma bacia de semicupios. Eram 8 horas. Na aldêa é esta a hora dos amantes. Manoel Pires enfiou as suas meias de lã até á cintura, calçou os sapatos confidentes de mil emprezas semelhantes, dobrou galhardamente o seu pau de carvalho ferrado de amarello, e partiu. Ás 8 e um quarto, estava Manoel Pires no quinteiro da Mariquinhas, esperando-a, com a anciedade propria da sua organisação nervosa. Maus fados quizeram que n'aquella noite, e a taes horas, andasse fóra de casa o tio João do Eiró. A rapariga entendeu que devia esconder em casa o seu boticario, em quanto o pai não recolhesse. Quiz primeiro sumil-o na córte das vaccas, mas lembrou-se que o pai, antes de deitar-se, costumava hir afagar a sua vacca castanha, pela qual na feira dos 8 rejeitára sete moedas e um quarto! Metteu-o, depois, na loja da egua, mas a bestinha, egoista e ciumosa da manjadoura, não comprehendeu que o snr. Manoel Pires era um racional, e jogou-lhe uma parelha de couces, que por um tris o não remetteu á galeria posthuma dos pharmaceuticos illustres. Introduziu-o no curral dos carneiros, mas a entrada do infeliz amante foi recebida com uma escaramuça de marradas, como se um lobo cerval os surprehendesse. Ultimamente, Mariquinhas, melhor avisada, levou o seu paciente amante para a cozinha, levantou um alçapão, fêl-o descer uma escada, e, quando descia mansamente o fatal alçapão, entrava o pai. --Que fazes tu ahi, rapariga?--bradou elle. Mariquinhas atrapalhou-se, e coçou a cabeça com ambas as mãos. Deve saber-se que o tio João desconfiava que a filha, quando podia, lhe roubava das caixas o seu sacco de milho, que vendia para comprar, á surrelfa, o seu cordãosinho de ouro. Na loja, onde o boticario desceu, estavam as caixas do milho, e não ha nada mais natural que a irritação do velho, quando apanhou a rapariga em flagrante delicto. --Onde está a chave d'este alçapão, rapariga? interpellou o tio João no mesmo diapasão. --A chave tem-na vm.^{ce} O homem entrou no seu quarto, proximo da cozinha, e veio com a chave, resmungando: --Ora deixa-te estar, que não has-de cá tornar po'lo vêso, minha cabra de não sei que diga! Fechou o alçapão, e foi-se deitar. A loja não tinha outra sahida. O boticario, por tanto, achava-se n'uma posição falsa, diz o leitor. Elle sabia lá o que eram posições falsas! O que elle fez primeiro foi apalpar. Encontrou uma caixa, e disse lá comsigo: «no chão não me deito eu.» Continuou fleugmaticamente a fazer o seu juizo critico do local em que se achava, e esbarrou com o nariz n'um presunto. Não obstante, o snr. Manoel Pires tirou uma segunda conclusão: «de fome não morro eu.» Mais adiante esbarrou n'uma pipa, e teve a pachorra de lhe tocar com os nós dos dedos para vêr se estava cheia. E o caso é que estava! Manoel Pires era um onagro de felicidade! «Deixa correr o mundo!...» disse elle, e estirou-se francamente sobre a caixa á espera d'um somno regalado. Passára-se uma hora, e o boticario, começando a pensar seriamente na sua situação, teve momentos de Napoleão na ilha de Santa Helena! Applicou o ouvido, e nem um sussurro ouviu na cozinha. Sentiu frio, por que em Dezembro não é facil aquecer o corpo no fogão do amor. Deu alguns passos maquinaes, buscando uma sahida qualquer, e encontrou um albardão. «Valha-nos ao menos isto,» disse elle, e pegou do albardão, collocou-o convenientemente sobre si, e tornou-se a deitar. Agora fallemos das colicas de Mariquinhas. Como sabem, o pai deitou-se, e a rapariga recolheu-se ao seu quarto, já que não posso dizer ao seu palheiro. Alma de pedreneira, ferida pelo fuzil do amor, a moçoila não atinava com a maneira de pôr no olho da rua o seu querido pharmaceutico. Inspirada pelo derradeiro esforço da sua dôr sublime, lembrou-se de pôr em execução um plano digno de melhor sorte. O pai resonava profundamente, Maria, pé ante pé, entrou-lhe no quarto e sahiu com as calças, em cujo bolso estava a chave. Judith não sahiu mais contente da tenda de Holofernes! Abriu o alçapão com subtileza, mas, no momento em que o levantava, os gonzos rangeram, e o lavrador, que sonhava com um sacco de milho que lhe emigrava das tulhas, saltou abaixo da cama, gritando: «ó rapariga!» Não se diz, em linguagem portugueza, sem um conhecimento profundo dos classicos, a atrapalhação da cachôpa! O tio João procurou as calças, e não as achou, mas o caso urgia. Mesmo em camisa (_proh pudor!_) saltou do quarto para a cozinha, já quando a filha se esgueirava, escada abaixo, para o quinteiro. O tio João, contra todas as leis da decencia, foi atraz de sua filha, e filou-a pelo gasnete: --O que hias tu fazer á loja, Maria? --Raios me parta (disse ella a chorar) se eu hia á caixa do pão ou dos feijões! --Então a que hias tu lá, diabo? --Assim me Deus salve, em como lhe não tirei nem um graeiro da caixa... O tio João sentiu frio, e reconheceu que a brisa gelada da noite lhe soprava nas pernas. Tornou para a cozinha, e foi direito ao alçapão; mas... ai d'elle!... o alçapão estava aberto, e o honrado chefe de familia resvalou com todo o peso da sua bestialidade até á loja. Manoel Pires soltou um urro de surpreza, que já não foi ouvido pelo João do Eiró, que desmaiára. Maria, ainda no quinteiro em postura de Dido lastimosa, ouviu um ruido, mas suppoz que era o cahir do alçapão. Atravessou a cozinha, amaldiçoando a sua sorte, e metteu-se no seu quarto a pensar no desenlace d'aquella tragedia. A tia Maria do Eiró, acordando, não achou na cama o seu velho, e sentiu ciumes, pela primeira vez na sua vida. Chamou com voz do intimo, tres vezes, o seu João, e como ninguem lhe respondesse, a mulher começou a vestir-se, enfiando responsos a Santo Antonio, de mistura com não sei quantas pragas, que ella rogava ao sumidouro das suas sócas. E a filha, cosida com as mantas, nem uma palavra! A tia Maria accendeu a candêa, e foi direita á cozinha, que era o ponto convergente de todas as operações d'aquelle drama. Viu o alçapão aberto, e não tinha ainda reconcentrado em si todo o horror d'aquella fatalidade, quando ouviu um gemido surdo que vinha lá debaixo. A pobre mulher lembrou-se que estava roubada! Abre a janella e grita desentoadamente «aqui d'el-rei ladrões!» A visinhança alarmou-se, e pouco depois os 60 fogos d'aquella aldêa agglomeravam-se no quinteiro do tio João do Eiró. Os mais destemidos rapazes da aldêa desceram á loja, e encontraram o pobre velho com a cabeça aberta por dous lados, e não sei quantas costellas desmanchadas. Reinou o silencio do mysterio! Ninguem conjecturava a causa d'aquelle estranho successo, quando um dos que farejavam os recantos da loja, descobre um pé por debaixo d'um albardão! Levantou-se uma gritaria infernal: até que o mais resoluto, afastando o albardão, soltou um brado terrivel d'espanto: --O senhor mestre Manoel Pires! Hão-de ter visto nos dramas descabellados um encapotado, que é necessariamente um rei, mostrar a cara, e petrificar uma sucia de perseguidores, que o atacam. Pois tal foi o effeito que o boticario produziu na chusma de valentões de fouce roçadoura, que o cercavam. O tio João, tornando a si, foi direito ao boticario para agradecer-lhe a promptidão com que viera cural-o. Mas a tia Maria poz tudo em pratos límpos: contou tudo a seu marido, que a escutava com cara de parvo, segundo convinha em semelhante conflicto. Mestre Manoel Pires hia ser apregoado ladrão, por que a sua importancia, passado o momento da surpreza, começava a soffrer uma grande baixa na opinião dos lavradores. Mas o seu caracter repellia tamanha affronta! A hora solemne d'uma honrosa satisfação estava chegada. O pharmaceutico, superando com a sua voz o ruido da turba conspirada, disse: --Chamem cá a Mariquinhas que essa é que sabe do negocio como elle é. O Pedro da Eira, apaixonado de Mariquinhas, vendo, com olhos d'amante, o segredo da cousa, quiz logo alli partir a cabeça do seu rival. --Oh su alma do diabo!... exclamou elle. Contiveram-no. O snr. João do Eiró chamou a filha. A pobre rapariga era uma cascata de lagrimas. Veio a muito custo, cuidando que era então a _sua fim_, como ella depois disse. A sua apparição impoz ás multidões um respeitavel silencio. Mestre Manoel Pires fallou assim, com ar de inspirado, e o braço direito em attitude prophetica: --Esta rapariga é minha mulher, se m'a derem. Eu vim aqui a troco d'ella. Em bom panno cahe uma nodoa. Mal remediado é mal acabado. Ámanhã se Deus quizer lêem-se os banhos, e não ha nada mais a fazer aqui! A Mariquinhas ficou com cara de tola, e não cabia n'um sino. Os paes, d'esses não se falla. Mestre Manoel era o casamento mais vantajoso da freguezia. Endireitou as costellas ao sogro, bebeu á saude da boa companhia, e casou com grande prestito, onde não faltou o juiz de paz, que teve de mais a mais o prazer de pendurar n'esse fausto dia o habito de Christo na casaca. Nas bodas celebres para sempre, nos annaes de Carrazedo de Monte-Negro, comeram-se dez cabritos assados com o competente arroz de forno. Já lá vão cinco annos. Mestre Manoel Pires espera ser deputado com um governo apreciador do verdadeiro talento; e a senhora Mariquinhas Pires já este anno veio a banhos de mar, e viu por ahi baronezas, que lhe despertaram o louvavel desejo de o ser. E ha-de ser, se Deus quizer. COUSAS QUE SÓ EU SEI. COUSAS QUE SÓ EU SEI. I. Na ultima noite do carnaval, que foi justamente aos 8 dias do mez de Fevereiro, do corrente anno[2] pelas 9 horas e meia da noite entrava no theatro de S. João, d'esta heroica, e muito nobre e sempre leal cidade, um dominó de setim. Déra elle os dous primeiros passos no pavimento da platêa, quando um outro dominó de velludo preto veio collocar-se-lhe frente a frente, n'uma contemplação immovel. O primeiro demorou-se um pouco a medir as alturas do seu admirador, e virou-lhe as costas com indifferença natural. O segundo, momentos depois, apparecia ao lado do primeiro, com a mesma attenção, com a mesma penetração de vista. D'esta vez o dominó-setim aventurou uma pergunta n'aquelle desgracioso falsete, que todos nós conhecemos: --Não quer mais do que isso? --Do _qu'isso_!...--respondeu um mascara que passava por casualidade, esganiçando-se n'uma risada que raspava o tympano.--_Olha do qu'isso!_... Já vejo que és pulha!... E retirou-se repetindo--_do qu'isso... do qu'isso..._ Mas o dominó-setim não soffreu, ao que parecia, a menor contrariedade com este charivari. E o dominó-velludo nem se quer acompanhou com os olhos o imprudente que viera embaraçar-lhe uma resposta digna da pergunta, fosse ella qual fosse. O _setim_ (fique assim conhecido para evitarmos palavras, e tempo que é um preciosissimo cabedal) o _setim_, d'esta vez, encarou com mais alguma reflexão o _velludo_. Conjecturou supposições fugitivas, que se destruiam mutuamente. O _velludo_ era forçosamente uma mulher. A pequenez do corpo, cuja flexibilidade o dominó não encobria; a delicadeza da mão, que protestava contra o ardil mentiroso d'uma luva larga; a ponta de verniz, que um descuido, no lançar do pé, denunciára debaixo da fimbria do velludo, este complexo de attributos, quasi nunca reunidos em um homem, captaram as serias attenções do outro, que, incontestavelmente, era um homem. --Quem quer que sejas, (disse o setim) não te gabo o gosto! Tomára eu saber o que vês em mim, que tanta impressão te faz! --Nada--respondeu o velludo. --Então, deixa-me, ou diz-me alguma cousa ainda que seja uma semsaboria, mais eloquente que o teu silencio. --Não te quero embrutecer. Sei que tens muito espirito, e seria um crime de leso-carnaval, se te dissesse alguma d'essas graças salobras, capazes de fazer calar para todo o sempre um Demosthenes de dominó. O _setim_ mudou de opinião a respeito do seu perseguidor. E não admira que o recebesse com rudeza no principio, porque, em Portugal, um dominó em corpo de mulher, que passeia «sosinha» n'um theatro, permitte umas suspeitas que não abonam as virtudes do dominó, nem lisongeam a vaidade de quem lhe recebe o conhecimento. Mas a mulher em quem recahe semelhante hypothese não conhece Demosthenes, nem diz _leso-carnaval_, nem aguça a phrase com o adjectivo _salobras_. O setim arrependeu-se da aspereza com que recebera os attenciosos olhares d'aquella incognita, que principiava a fazer-se valer como tudo aquillo que apenas se conhece por uma face boa. O _setim_ juraria, pelo menos, que aquella mulher não era estupida. E, seja dito sem tenção offensiva, já não era insignificante a descoberta, porque é mais facil descobrir um mundo novo que uma mulher illustrada. É mais facil ser Christovão Colombo que Emilio Girardin. O _setim_, ouvida a resposta do _velludo_, offereceu-lhe o braço, e gostou da boa vontade com que lhe foi recebido. --Conheço (diz elle), que o teu contacto me espiritualisa, bello dominó... --_Bello_, me chamas tu!... É realmente uma leviandade que te não faz honra!... Se eu levantasse esta sanefa de sêda, que me faz bonita, ficavas como aquelle poeta hespanhol que soltou uma exclamação de terror na presença d'um nariz... que nariz não seria, santo Deus!... Não sabes essa historia? --Não, meu anjo! --_Meu anjo!_... que graça! Pois eu t'a conto. Como o poeta se chama não sei, nem me importa. Imagina tu que és um poeta, phantastico como Lamartine, vulcanico como Byron, sonhador como Mac-Pherson, e voluptuoso como Voltaire aos 60 annos. Imagina que o tedio d'esta vida chilra que se vive no Porto te obrigou a deixar no teu quarto a pythonissa descabellada das tuas inspirações, e vieste por aqui dentro a procurar um passatempo n'estes passatempos alvares d'um baile de carnaval. Imagina que encontravas uma mulher extraordinaria de espirito, um anjo de eloquencia, um demonio de epygramma, em fim, uma d'estas creações miraculosas que fazem rebentar uma chamma improvisa no coração mais de gêlo, e de lama, e de toucinho sem nervo. Ris? Achas nova a expressão, não é assim? Um coração de toucinho parece-te uma offensa ao bom senso anatomico, não é verdade? Pois, meu caro dominó; ha corações de toucinho estreme. São os corações, que reçumam oleo em certas caras estupidas... por exemplo... olha este homem redondo, que aqui está, com as palpebras em quatro refêgos, com os olhos vermelhos como os d'um coelho morto, com o queixo inferior pendente, e o labio escarlate e vidrado como o bordo d'uma pingadeira, orvalhada de banha de porco... Esta cara não te parece um grande rijão? Não crês que este baboso tenha um coração de toucinho? --Creio, creio; mas falla mais baixo que o desgraçado está a gemer debaixo do teu escalpello... --És tolo, meu cavalheiro! Elle entende-me lá!... É verdade, ahi vai a historia do hespanhol, que tenho que fazer... --Então queres deixar-me? --E tu?... queres que eu te deixe? --Palavra d'honra que não! se me deixas, retiro-me... --És muito amavel, meu querido Carlos... --Conheces-me?! --Essa pergunta é ociosa. Não és tu _Carlos_! --Já fallaste comigo na tua voz natural? --Não; mas começo a fallar agora. E com effeito fallou. Carlos ouviu um som de voz sonora, metallica, e insinuante. Cada palavra d'aquelles labios mysteriosos sahia vibrante e afinada como a nota d'uma tecla. Tinha aquelle não-sei-que, que só se escuta nas salas, onde fallam mulheres distinctas, mulheres que obrigam a gente a prestar fé aos privilegios, ás prerogativas, aos dons muito peculiares da aristocracia do sangue. Todavia, Carlos não se recordava de ter ouvido semelhante voz, nem semelhante linguagem. «Uma aventura de romance!» dizia elle lá comsigo, em quanto o dominó-velludo, conjecturando o enleio em que pozera o seu enthusiasta companheiro, continuava a fazer gala do mysterio, que é de todas as alfaias aquella que mais alinda a mulher! Se ellas podessem andar sempre de dominó! Quantas mediocridades em intelligencia rivalisariam com Jorge Sand! Quantas physionomias infelizes viveriam com a fama da mulher de Abdel-Kader! --Então quem sou eu?--proseguiu ella--não me dirás?... Não dizes... pois então, tu és Carlos, e eu sou Carlota... fiquemos n'isto, sim? --Em quanto eu não souber o teu nome, deixa-me chamar-te «anjo.» --Como quizeres; mas sinto dizer-te que não és nada original! _Anjo!_... é um appellido tão safado como _Ferreira_, _Silva_, _Sousa_, _Costa_... et cetera. Não vale a pena questionarmos: baptisa-me á tua vontade. Ficarei sendo o teu «anjo de entrudo!» E a historia?... Imagina que te possuias d'um amor impetuoso por essa mulher, que phantasiaste linda, e insensivelmente lhe curvaste o joelho, pedindo-lhe uma esperança, um sorriso affectuoso através da mascara, um aperto convulsivo de mão, uma promessa, ao menos, de se mostrar um, dous, tres annos depois. E essa mulher, cada vez mais sublime, cada vez mais litterata, cada vez mais radiosa, protesta eloquentemente contra as tuas instancias, declarando-se muita feia, indecentissima de nariz, horrivel até, e, como tal, pesa-lhe na consciencia matar as tuas candidas illusões, levantando a mascara. Tu que a não crês, instas, supplicas, abrasas-te n'um ideal, que toca as extremas do ridiculo, e estás capaz de lhe dizer que te abolas o craneo com um tiro de pistola, se ella não levanta a cortina d'aquelle mysterio que te dilacera uma por uma as fibras do coração. Chamas-lhe Beatriz, Laura, Fornarina, Natercia, e ella diz-te que se chama Custodia, ou Genoveva para te aguar a poesia d'esses nomes, que, na minha humilde opinião, são completamente fabulosos. O dominó quer fugir-te ardilosamente, e tu não lhe deixas um passo livre, nem um dito espirituoso a outro, nem um lançar d'olhos para os mascaras, que a fixam como quem sabe que está alli uma rainha, envolta n'aquelle manto negro. Por fim, a tua perseguição é tal, que a desconhecida Desdemona finge assustar-se, e sahe comtigo ao salão do theatro para levantar a mascara. Arfa-te o coração na anciedade d'uma esperança: sentes o jubilo do cego de nascimento, que vai vêr o sol; estremeces como a creança a quem vão dar um bonito, que ella não viu ainda, mas imagina ser quanto o seu coração infantil ambiciona n'este mundo... Ergue-se a mascara!... Horror!... vês um nariz... um nariz-pleonasmo, um nariz homerico, um nariz maior que o do duque de Choiseul, onde cabiam tres jesuitas a cavallo!... Recúas!... sentes despregar-se-te o coração das entranhas, córas de vergonha, e foges desabridamente... --Tudo isso é muito natural. --Pois não ha nada mais artificial, meu caro senhor. Eu lhe conto o resto, que é o mais interessante para um mancebo que faz do nariz d'uma mulher o thermometro de avaliar-lhe a temperatura do coração. Imagina, meu joven Carlos, que sahiste do theatro depois, e entraste na _Aguia d'Ouro_ a comer ostras, segundo o costume dos elegantes do Porto. E quando, pensavas, ainda aterrado, na aventura do nariz, te apparecia fatidico dominó, e se assentava ao teu lado, silencioso e immovel, como a larva das tuas asneiras, cuja memoria procuravas delir na imaginação com os vapores do vinho... Perturba-se-te a digestão, e sentes contracções no estomago, que te ameaçam com o vomito. A massa enorme d'aquelle nariz figura-se-te no prato em que tens a ostra, e já não pódes levar á bocca um bocado do teu appetitoso manjar sem um fragmento d'aquelle fatal nariz á mistura. Queres transigir com o silencio do dominó; mas não pódes. A inexoravel mulher aproxima-se de ti, e tu, com um sorriso cruelmente sarcastico, pedes-lhe que te não entorne com o nariz o copo de vinho. Achas isto natural, Carlos? --Ha ahi crueldade de mais... O poeta devia ser mais generoso com a desgraça, porque a missão do poeta é a indulgencia não só para as grandes affrontas, mas até para os grandes narizes. --Será; mas o poeta, que transgrediu a sublime missão da generosidade para com as mulheres feias, vai ser punido. Imagina que aquella mulher, pungida pelo sarcasmo, levanta a mascara. O poeta ergue-se, e vai fugir com grande escandalo do dono da casa, que naturalmente tem a sorte do boticario de Nicolau Tolentino. Mas... vingança do céo!... aquella mulher ao levantar a mascara arranca do rosto um nariz postiço, e deixa vêr a mais formosa cara que o céo alumia ha seis mil annos! O hespanhol quer ajoelhar áquella dulcissima visão de um sonho, mas a nobre andaluza repelle-o com um gesto, onde o despreso está associado á dignidade mais senhoril. II. Carlos scismava na applicação da anedocta, quando o dominó lhe disse, adivinhando-lhe o pensamento: --Não creias que eu seja mulher de nariz de cera, nem me supponhas capaz de assombrar-te com a minha fealdade. A minha modestia não vai tão longe... Mas, meu pacientissimo amigo, ha em mim um defeito peor que um nariz enorme: não é physico nem moral; é um defeito repulsivo e repellente: é uma cousa que eu não sei exprimir-te com a linguagem do inferno, que é a unica e mais eloquente que eu sei fallar, quando me lembro que sou assim defeituosa! --És um enigma!...--atalhou Carlos, embaraçado, e convencido de que encontrára um typo maior que os moldes tacanhos da vida romanesca em Portugal. --Sou, sou!...--acudiu ella com rapidez--sou aos meus proprios olhos um dominó, um continuado carnaval de lagrimas... Está bom! não quero tristezas... Se me tocas na tecla do sentimentalismo, deixo-te. Eu não vim aqui fazer papel de dama dolorida. Soube que estavas aqui, procurei-te, esperei-te mesmo com anciedade, porque sei que és espirituoso, e podias, sem prejuizo da tua dignidade, ajudar-me a passar algumas horas de illusão. Fóra d'aqui, tu ficas sendo Carlos, e eu serei sempre uma incognita muito grata ao seu companheiro. Agora acompanha-me: vamos ao camarote 10 da 2.^a ordem. Conheces aquella familia? --Não. --É uma gente da provincia. Não digas tu nada; deixa-me fallar a mim, e verás que não passas mal... É muito orgulho, não achas? --Não acho, não, minha querida; mas eu antes queria não desperdiçar estas horas porque fogem. Tu vaes fallar, mas não é comigo. Sabes que tenho ciumes de ti? --Sei que tens ciumes de mim... Sabes tu que eu tenho um profundo conhecimento do coração humano? Já vês que não sou a mulher que imaginas, ou quererias que eu fosse. Não comeces a desvanecer-te com uma conquista esperançosa. Faz calar o teu amor proprio, e emprega a tua vaidade em bloquear com ternuras calculadas uma innocente a quem possas fazer feliz, em quanto a enganas... --Julgas, por tanto, que te minto!... --Não julgo, não. Se mentes a alguem é a ti proprio: bem vês que não te creio... Tempo perdido! Anda, vem comigo, se não... --Senão... o que? --Senão... olha... E a melindrosa desconhecida largou-lhe o braço com delicadeza, e retirara-se, apertando-lhe a mão. Carlos, sinceramente commovido, apertou aquella mão, com o frenesi apaixonado de um homem que quer suster a fuga da mulher por quem se mataria. --Não--exclamou elle com enthusiasmo--não me fujas, porque me levas a esperança mais bella que o meu coração concebeu. Deixa-me adorar-te, sem te conhecer!... Não levantes nunca esse véo... mas deixa-me vêr a face da tua alma, que deve ser a realidade d'um sonho de vinte e sete annos... --Estás dramatico, meu poeta! Eu sinto realmente a minha pobreza de palavras garrafaes... Queria ser uma vestal d'estilo fervente para sustentar o fogo sagrado do dialogo... O monologo deve cançar-te, e a tragedia desde Sophocles até nós não póde dispensar uma segunda pessoa... --És um prodigio... --De litteratura grega, não é verdade? Inda sei muitas outras cousas da Grecia. A Lais tambem era muito versada, e repetia as rapsodias gregas com um garbo sublime; mas a Lais era... sabes tu o que ella era?... E serei eu o mesmo? Já vês que a litteratura não é symptoma de virtudes dignas da tua affeição... Tinham chegado ao camarote na 2.^a ordem. O dominó-velludo bateu, e a porta foi, como devia ser aberta. A familia, que occupava o camarote, compunha-se de muitas pessoas, sem typo, vulgarissimas, e prosaicas de mais para captarem a attenção d'um leitor avesso a trivialidades. Todavia, estava ahi uma mulher que valia um mundo, ou cousa maior que o mundo--o coração d'um poeta. As rosas purpurinas dos vinte annos tinham-lhes sido crestadas pelo halito abrasado dos salões. A placidez extemporanea d'uma vida agitada, via-se-lhe no rosto protestando não contra os prazeres, mas contra a debilidade d'um sexo, que não póde acompanhar com a materia as evoluções desenfreadas do espirito. Mas que olhos! mas que vida! que electricidade no frenesi d'aquellas feições! que projecção de uma sombra azulada lhe descia das palpebras! Era uma mulher, em cujo rosto transluzia a soberba, talvez demasiada, da sua superioridade. O dominó-velludo estendeu-lhe a mão, e chamou-lhe Laura. Seria Laura? É certo que ella estremeceu, e recuou a mão repentinamente como se uma vibora lh'a tivesse mordido. Aquella palavra symbolisava um mysterio dilacerante: era a senha de uma grande lucta em que a pobre senhora devia sahir escorrendo sangue. --Laura--repetiu o dominó--não me apertas a mão? Deixa-me ao menos sentar-me perto... muito perto de ti... sim? O homem, que mais proximo estava de Laura, afastou-se urbanamente para deixar aproximar um mascara, que denunciara o sexo pela voz, e a distincção pela mão. E Carlos nunca mais despregou os olhos d'aquella mulher, que revelava a cada instante um pensamento nas variadas physionomias com que queria disfarçar a sua angustia intima. A desconhecida fez signal a Carlos para que se aproximasse. Carlos, enleado nos embaraços naturaes d'aquella situação toda para elle enygmatica, recusava cumprir as imperiosas determinações d'uma mulher que parecia calcar todos os melindres. Os quatro ou cinco homens, que pareciam familiares de Laura, não deram muita importancia aos dominós. Conjecturaram, primeiro, e quando suppozeram que tinham conhecido as visitas, deixaram em plena liberdade as duas mulheres que se fallavam de perto como duas amigas intimas. O cavalheiro passou por um tal Eduardo, e a desconhecida tiveram-n'a por uma D. Antonia. Laura humedecia os labios com a lingua. As surprezas pungentes produzem uma febre, e aquecem o mais bem calculado sangue frio. A incognita, profundamente conhecedora da situação da sua victima, fallou ao ouvido de Carlos: --Estuda-me aquella physionomia. Eu não estou em circumstancias de ser Max... Soffro demasiado para contar as pulsações d'este coração. Se te sentires condoido d'esta mulher, tem compaixão de mim, que sou mais desgraçada que ella. E voltando-se para Laura: --Procuro, ha quatro annos, uma occasião de prestar homenagem á tua conquista. Deus, que é Deus, não despreza os incensos do verme da terra, nem esconde á vista dos homens a sua fronte magestosa n'um manto de estrellas. Tu, Laura, que és mulher, embora os homens te chamem anjo, não despresarás vaidosa a homenagem d'uma pobre creatura, que vem depôr a teus pés o obulo sincero da sua adoração. Laura não levantava os olhos do leque; mas a mão, que o sustinha, tremia; e os olhos, que o contemplavam, pareciam absortos n'um quadro afflictivo. E o dominó continuou: --Foste muito feliz, minha cara amiga! Eras digna de o ser. Colheste o fructo abençoado da abençoada semente que o Senhor fecundou no teu coração de pomba!... Olha, Laura, deves dar muitas graças á Providencia, que velou os teus passos no caminho do crime. Quando devias resvalar no abysmo da prostituição, subiste, radiante de virtudes, ao throno das virgens. O teu anjo da guarda foi-te leal! És uma excepção a milhares de desgraçadas, que nasceram em estofos de damasco, e cresceram em perfumes de opulencia. E, quanto mais, minha ditosa Laura, tu nasceste nas palhas da miseria, cresceste nos andrajos da indigencia, ainda viste com os olhos da razão a desgraça sentada á cabeceira do teu leito... e, com tudo, eis-te ahi rica, honrada, formosa, e soberba de encantos, com que pódes insultar toda essa turba de mulheres, que te admiram!... Ha tanta mulher infeliz!... Queres saber a historia d'uma?... Laura, contorcendo-se como se fosse de espinhos a cadeira em que estava, não tinha ainda balbuciado um monosyllabo; mas a urgente pergunta, duas vezes repetida, do dominó, obrigou-a a responder affirmativamente com um gesto. --Pois bem, Laura, conversemos amigavelmente. Um dos individuos, que estava presente, e ouvira pronunciar _Laura_, perguntou á mulher que assim era chamada: --Elisa, ella chama-te _Laura_? --Não, meu pai...--respondeu Elisa, titubeando. --Chamo Laura, chamo... e que tem lá isso, snr. visconde?--Atalhou a incognita, com affabilidade, erguendo o falsete para ser bem ouvida.--É um nome de carnaval, que passa com os dominós. Quarta feira de cinza torna a filha de v. exc.^a a chamar-se Elisa. O visconde sorriu-se, e o dominó continuou, abaixando a voz, e fallando naturalmente: III. --Henriqueta... Esta palavra foi um abalo que fez vibrar todas as fibras de Elisa. O rosto incendiou-se-lhe d'aquelle encarnado do pudor ou da raiva. Esta sensação violenta não podia ser desapercebida. O visconde, que parecia estranho á conversação intima d'aquellas suppostas amigas, não o pôde ser á agitação febril de sua filha. --Que tens, Elisa?!--perguntou elle sobresaltado. --Nada, meu pai... Foi um ligeiro incommodo... Estou quasi boa... --Se queres respirar vamos ao salão, ou vamos para casa... --Antes para casa--respondeu Elisa. --Eu vou mandar buscar a sege--disse o visconde; e retirou-se. --Não vás, Elisa...--disse o dominó, com uma voz imperiosa, semelhante a uma ameaça inexoravel.--Não vás... porque, se vaes, contarei a todo o mundo uma historia que só tu has-de saber. Este outro dominó, que tu não conheces, é um cavalheiro: não temas a menor imprudencia. --Não me martyrises!--disse Elisa.--Eu sou infeliz de mais, para ser flagellada com a tua vingança... Tu és Henriqueta, não és? --Que te importa a ti saber quem eu sou?!... --Importa muito... Sei que és desgraçada!... Não sabia que vivias no Porto; mas palpitou-me o coração que eras tu, apenas me chamaste Laura. O visconde entrou afadigado, dizendo que a sege não podia tardar, e convidando a filha para dar alguns passeios no salão do theatro. Elisa satisfez a carinhosa anciedade do pai, dizendo que se sentia boa, e pedindo-lhe que se demorasse até mais tarde. --Onde julgavas tu que eu existia? No cemiterio não é assim?--perguntou Henriqueta. --Não: sabia que vivias, e prophetisava que devia encontrar-te... Que historia me queres tu contar?... a tua? Essa já eu sei... imagino-a... tens sido muito infeliz... Olha, Henriqueta... deixa-me dar-te esse tratamento affectuoso com que nos conhecemos, com que fomos tão amigas, alguns fugitivos dias, no tempo em que o destino nos marcava com o mesmo stygma de infortunio... --O mesmo... não!...--atalhou Henriqueta. --O mesmo, sim, o mesmo... e se me forças a contradizer-te, direi que invejo a tua sorte, seja ella qual fôr... Elisa chorava, e Henriqueta emmudecera. Carlos estava impaciente pelo desfecho d'esta aventura, e desejava, ao mesmo tempo, reconciliar estas duas mulheres, e fazel-as amigas, sem saber a razão porque eram inimigas. A belleza impõe-se á compaixão. Elisa era bella, e Carlos era d'uma sensibilidade extremosa. Nem elle já sabia decidir-se entre aquellas duas mulheres. A mascarada _poderia ser_, mas a outra _era_ um anjo de sympathia e formosura. O espirito gosta do mysterio que esconde o bello; mas decide-se pela belleza real, sem mysterio. Henriqueta, depois de alguns minutos de silencio, durante os quaes não era possivel avaliar-lhe o coração pela exterioridade da physionomia, exclamou com impeto, como se despertasse d'um sonho, d'aquelles intimos sonhos de dôr, em que a alma se reconcentra: --Teu marido? --Está em Londres. --Ha quanto tempo o não viste? --Ha dous annos. --Abandonou-te? --Abandonou-me. --E tu?... abandonaste-o? --Não concebo a pergunta... --Ainda o amas? --Ainda... --Com paixão? --Com delirio... --Escreves-lhe? --Não me responde... Despresa-me, e chama-me _Laura_. --Elisa!--disse Henriqueta, com a voz tremula, e apertando-lhe a mão com enthusiasmo nervoso--Elisa! perdôo-te... És bem mais desgraçada que eu, porque tens um homem que pôde chamar-te Laura, e eu não tenho senão um nome... sou Henriqueta! Adeus. Carlos pasmou do desenlace cada vez mais embrulhado d'aquelle prologo d'um romance. Henriqueta tomou-lhe o braço com precipitação, e sahiu do camarote abaixando levemente a cabeça aos cavalheiros, que se davam tractos por adivinhar o segredo d'aquella conversa. --Não pronuncies o meu nome em voz alta, Carlos. Sou Henriqueta; mas não me atraiçoes, se queres a minha amisade. --Como hei-de eu atraiçoar-te, se não sei quem és? Pódes chamar-te Julia em vez de Henriqueta, que, nem por isso te fico conhecendo mais... Tudo mysterios! Tens-me, ha mais d'uma hora, n'um estado de tortura! Eu não sirvo para estas emboscadas... Diz-me quem é aquella mulher... --Não viste que é D. Elisa Pimentel, filha do visconde do Prado? --Não a conhecia... --Então que mais queres que eu te diga? --Muitas outras cousas, minha ingrata. Quero que me digas quantos nomes tem aquella Laura, que se chama Elisa. Falla-me do marido d'aquella mulher... --Eu te digo... O marido d'aquella mulher chama-se Vasco de Seabra... Estás satisfeito? --Não... Quero saber que relações tens tu com esse Vasco ou com aquella Laura? --Não saberás mais nada, se fores impaciente. Imponho-te mesmo um profundo silencio a respeito do que ouviste. Á menor pergunta que me faças, deixo-te ralado por essa curiosidade indiscreta, que te faz parecer uma mulher de soalheiro. Eu contrahi comtigo a obrigação de te contar a minha vida? --Não; mas contrahiste com a minha alma a obrigação de eu me interessar na tua vida e nos teus infortunios desde este momento. --Obrigado, cavalheiro!--Juro-te uma sincera amisade.--Has-de ser o meu confidente. Estavam, outra vez, na platêa. Henriqueta aproximou-se ao quarto camarote da primeira ordem, firmou o pé de fada na frisa, segurou-se ao peitoril do camarote, e travou conversação com a familia que o occupava. Carlos acompanhou-a em todos estes movimentos, e preparou-se para um novo enygma. Segundo o costume, as mãos de Henriqueta passaram por uma analyse rigorosa. Não era possivel, porém, fazel-a tirar a luva da mão esquerda. --Dominó, porque não deixas vêr este annel?--Perguntava uma senhora de olhos negros, e vestida de negro, como uma viuva rigorosamente enluctada. --Que te importa o annel, minha querida Sophia!?... Fallemos de ti, aqui em segredo. Ainda vives melancolica, como a Dido da fabula? Fica-te bem essa côr de esquifes, mas não sustentas o caracter artistico com perfeição. A tua tristeza é fingida, não é verdade? --Não me offendas, dominó, que eu não te mereço essa injuria... A desgraça nunca se finge... --Disseste uma verdade, que é a tua condemnação. Eu, se tivesse sido abandonada por um amante, não vinha aqui dar-me em espectaculo a um baile de mascaras. A desgraça não se finge, é verdade; mas a saudade esconde-se para chorar, e a vergonha não se ostenta radiosa d'esse sorriso que te brinca nos labios... Olha, minha amiga, ha umas mulheres que nasceram para esta época, e para estes homens. Ha outras que a Providencia caprichosa atirou a esta geração corrompida como os imperadores romanos atiravam os christãos ao amphitheatro dos leões. Felizmente que tu não és das segundas, e sabes harmonisar com o teu genio folgasão e desleixado uma hypocrisia que te vai bem n'um sophá de pennas, onde te recostas com um perfeito conhecimento das attitudes languidas das mulheres cançadas do Balzac. Eu, se fosse homem, amava-te por desfastio!... És a unica mulher para quem este paiz é pequeno. Devias conhecer o Regente, e Richelieu, e os abbades de Versailles, e as filhas do Regente, e as Heloïsas desenvoltas dos abbades, e as aias da duqueza do Maine... et cetera. Isto por cá é pequenissimo para as Phryneas. Uma mulher da tua indole morre asphyxiada n'este ambiente pesado em que o coração, nas suas expansões romanticas, encontra, quasi sempre, a mão burgueza das conveniencias a tapar-lhe os respiradouros... Parece que te enfadas de mim?... --Não te enganas, dominó... Obsequeias-me se me não deres o incommodo de te mandar retirar. --És muito delicada, minha nobre Sophia!... Já agora, porém, deixa-me dar-te uma idêa mais precisa d'esta mulher que te enfada, e que, apesar das tuas injustiças, se interessa na tua sorte. Diz-me cá... Tens uma sincera paixão, uma saudade pungente por aquelle bello capitão de cavallaria, que te deixou, tão sosinha, com as tuas agonias de amante? --Que te importa?... --És cruel! Pois não ouves o tom sentimental com que te faço esta pergunta?... Quantos annos tens?... --Metade e outros tantos... --A resposta não me parece tua... Aprendeste essa vulgaridade com a filha do teu sapateiro?... Ora olha: tu tens 38 annos, a não ser mentiroso o assento de baptismo, que se lê no cartorio da freguezia dos Martyres em Lisboa. Aos vinte annos amavas com ternura um tal Pedro Sepulveda. Aos vinte e cinco, amavas com paixão, um tal Jorge Albuquerque. Aos 30, amavas com delirio, um tal Sebastião de Meirelles. Aos 35, amavas, em Londres, com frenesi um tal... como se chamava... não me recordo... diz-me, por piedade o nome d'esse homem, que, se não, fica o meu discurso sem o effeito do drama... Não dizes, má?... Ai!... eu tenho aqui a mnemonica... Henriqueta tirou a luva da mão esquerda, e deixou vêr um annel... Sophia estremeceu, e córou até ás orelhas. --Já te recordas?... Não córes, minha querida amiga... que não fica bem ao teu caracter de mulher que conhece o mundo pela face positiva... Deixa-me agora arredondar o periodo, como dizem os litteratos... Ora tu que amaste desenfreadamente cinco antes do sexto homem, como queres fingir debaixo d'esse vestido negro, um coração varado de saudades e orphão de consolações?... Adeus, minha bella hypocrita... Henriqueta desceu elegantemente do seu poleiro, e deu o braço a Carlos. IV. Eram tres horas. Henriqueta disse que se retirava, depois de victimar com seus ligeiros, mas pungentes gracejos, alguns d'aquelles muitos que provocam o sarcasmo só com a presença, só com o vulto corporal, só com a semsaboria de um remoque parvo e pretencioso. O carnaval é uma exposição annual d'estes infelizes. Carlos, ao vêr que Henriqueta se retirava com um segredo que tanto irritára a sua curiosidade, instou com delicadeza, com meiguice, e até com resentimento, pela realidade de uma esperança, que fizera a sua felicidade de algumas horas. --Eu não me arrependo--disse elle--de ter sido a voluntaria testemunha de teus desforços... Ainda mesmo que me tivessem conhecido, e tu fosses uma mulher licenciosa e depravada, não me arrependeria... Ouvi-te, illudi-me na esperança vaidosa de conhecer-te, tive orgulho de ser o escolhido para sentir de perto as pulsações vertiginosas do teu coração... estou recompensado de mais... Ainda assim, Henriqueta, eu não tenho pejo de abrir-te a minha alma, confessando-te um desejo de conhecer-te que não posso illudir... Este desejo vaes-m'o tu convertendo n'uma dôr; e será logo uma saudade insupportavel, que te faria compaixão se soubesses avaliar o que é na minha alma um desejo _impossivel_. Se tu m'o não dizes, quem me dirá o teu nome? --Não sabes que sou Henriqueta? --Que importa? E serás tu Henriqueta? --Sou... juro-te que sou... --Não basta isto... Ora diz-me... não sentes a precisão de ser-me grata? --A que, meu cavalheiro? --Grata ao melindre com que te tenho tractado, grata á delicadeza com que te peço uma revelação da tua vida, e grata a este impulso invencivel que me manda ajoelhar-te... Será nobre zombar d'um amor que involuntariamente fizeste nascer? --Não te illudas, Carlos--replicou Henriqueta n'um tom de seriedade, semelhante ao de uma mãi que aconselha seu filho. O amor não é isso que pica a tua curiosidade. As mulheres são faceis de transigir de boa fé com a mentira, e, pobres mulheres!... succumbem muitas vezes á eloquencia artificiosa d'um conquistador. Os homens, fartos de estudarem as paixões na sua origem, e enfadados das rapidas illusões que elles choram todos os dias, estão promptos sempre a declararem-se affectados da cholera-paixão, e nunca apresentam _carta-limpa_ de scepticos. De maneira que o sexo fragil das chimeras sois vós, creancinhas de toda a vida, que brincaes aos trinta annos com a mulher como aos seis brincaveis com os cavallinhos de pau, e os fradinhos de sabugo! Olha, Carlos, eu não sou ingrata... Vou-me despedir de ti, mas hei-de conversar comtigo ainda. Não instes; abandona-te á minha generosidade, e verás que alguma cousa lucraste em me encontrar e em me não conhecer. Adeus. Carlos acompanhou-a com os olhos, e permaneceu alguns minutos n'uma especie de idiotismo, quando a viu desapparecer á sahida do theatro. O seu primeiro pensamento foi seguil-a; mas a prudencia lembrou-lhe que era uma indignidade. O segundo foi empregar a intriga astuciosa até roubar alguma revelação áquella Sophia da primeira ordem ou á Laura da segunda. Não lhe lembraram recursos, nem eu sei quaes elles poderiam ser. Laura e Sophia, para dissiparem completamente a esperança anciosa de Carlos, tinham-se retirado. Era necessario esperar, era necessario confiar n'aquella mulher extraordinaria, cujas promessas o alvoroçado poeta traduzia em mil versões. Carlos retirou-se, e esqueceu não sei quantas mulheres, que ainda, na noite anterior, lhe povoaram os sonhos. Ao amanhecer, ergueu-se, e escreveu as reminiscencias vivas da scena, quasi fabulosa, que lhe transtornava o plano de vida. Não houve nunca um coração tão ambicioso de futuro, tão fervente de poesia, e tão phantastico de conjecturas! Carlos adorava seriamente aquella mulher! Como estas adorações se afervoram com tão pouco, não sei eu: mas que o amor é assim, vou eu jural-o, e espero que os meus amigos me não deixem mentir. Imaginem, por tanto, a inquietação d'aquelle grande espiritualista, quando viu passarem, vagarosos e enfadonhos, oito dias, sem que o mais ligeiro indicio lhe viesse confirmar a existencia de Henriqueta! Não direi que o desesperado amante appellou para o supremo tribunal das paixões impossiveis. O suicidio não lhe passou nunca pela imaginação; e muito sinto que esta verdade diminua as sympathias que o meu heroe poderia grangear. A verdade, porém, é que o apaixonado mancebo vivia sombrio, isolava-se contra os seus habitos socialmente galhofeiros, abominava as impertinencias de sua mãi que o consolava com anedoctas tragicas a respeito de rapazes cegos de amor, e, emfim, soffrera a ponto tal, que resolvera abandonar Portugal, se, no fim de quinze dias a fatidica mulher continuasse a ludibriar a sua esperança. Diga-se, porém, em honra e louvor da astucia humana: Carlos, resolvido a partir, lembrou-se de pedir a um seu amigo, que, na gazetilha do _Nacional_, dissesse, por exemplo, o seguinte: «O snr. Carlos d'Almeida vai, no proximo paquete, para Inglaterra. S. s.^a tenciona observar de perto a civilisação das primeiras capitaes da Europa. O snr. Carlos d'Almeida é uma intelligencia, que, enriquecida pela instrucção pratica da sua visita aos focos da civilisação, ha-de voltar á sua patria com fecundo cabedal de conhecimentos em todos os ramos das sciencias humanas. Fazemos votos porque s. s.^a se recolha em breve ao seio dos seus numerosos amigos.» Esta local bem podia ser que chegasse ás mãos de Henriqueta. Henriqueta bem podia ser que conjecturasse o imperioso motivo, que obrigava o infeliz a buscar distracções longe da patria, onde a sua paixão era invencivel. E, depois, nada mais facil que uma carta, uma palavra, um raio de esperança, que lhe transtornasse os seus planos. Era esta a infallivel tenção de Carlos, quando ao decimo quarto dia lhe foi entregue a seguinte carta: V. «Carlos. «Sem offender as leis da civilidade, continuo a dar-te o tratamento do dominó, porque, em boa verdade, eu continuo a ser para ti um dominó moral, não é assim? «Passaram-se quatorze dias, depois que tiveste o mau encontro d'uma mulher, que te privou de algumas horas de deliciosa intriga. Victima da tua delicadesa, levaste o sacrificio a ponto de te mostrares interessado na sorte d'essa celebre desconhecida que te mortificou. Não serei eu, generoso Carlos, ingrata a essa manifestação cavalheirosa, embora ella seja um rasgo de artista, e não um desejo espontaneo. «Queres saber porque tenho demorado quatorze dias este grande sacrificio que vou fazer? É porque ainda hoje me levanto d'uma febre incessante, que me insultou n'aquelle camarote da segunda ordem, e que, n'este momento, parece declinar. «Permitta Deus que seja longo o intervallo para ser longa a carta: mas eu sinto-me tão pequena para os sacrificios grandes!... Não te quero responsabilisar pela minha saude; mas, se o meu silencio de longos tempos succeder a esta carta, conjectura, meu amigo, que Henriqueta cahiu no leito, d'onde ha-de erguer-se, senão é graça que os mortos hão-de erguer-se um dia. «Queres apontamentos para um romance que terá o merito de ser portuguez? Vou dar-t'os. «Henriqueta nasceu em Lisboa. Seus paes tinham o lustre dos brazões, mas não brilhavam nada pelo ouro. Viviam sem fausto, sem historia contemporanea, sem bailes, e sem bilhetes de boas festas. As visitas que Henriqueta conhecia eram, no sexo feminino, quatro velhas suas tias, e, no masculino, quatro caseiros que vinham annualmente pagar as rendas, com que seu pai regulava economicamente uma nobre independencia. «O irmão de Henriqueta era um moço de talento, que grangeara uma instrucção, enriquecida sempre pelos desvelos com que afagava a sua paixão unica. Isolado de todo o mundo, o irmão de Henriqueta confiou a sua irmã os segredos do seu muito saber, e formou-lhe um espirito varonil, e inspirou-lhe uma ambição faminta de sciencia. «Bem sabes, Carlos, que fallo de mim, e não posso, n'esta parte, engrinaldar-me de flôres immodestas, se bem que não me faltariam depois espinhos que me desculpassem as vaidosas flôres... «Eu cheguei a ser o ecco fiel dos talentos de meu irmão. Nossos paes não comprehendiam as praticas litterarias com que aligeiravamos as noites d'inverno; e, mesmo assim, folgavam de nos ouvir, e via-se-lhes nos olhos aquelle rir de bondoso orgulho, que tanto inflamma as vaidades da intelligencia. «Aos dezoito annos achei pequeno o horisonte da minha vida, e enfastiei-me da leitura, que m'o fazia cada vez amesquinhar-se mais. Só com a experiencia, se conhece o quanto a litteratura modifica a organisação de uma mulher. Eu creio que a mulher, apurada na sciencia das cousas, pensa de um modo extraordinario na sciencia das pessoas. O prisma das suas vistas penetrantes é bello, mas as lindas cambiantes do seu prisma são como as côres variegadas do arco iris, que annuncia tempestade. «Meu irmão lia-me os segredos do coração! não é facil mentir ao talento com as hypocrisias do talento. Comprehendeu-me, e teve dó de mim. «Meu pai morreu, e minha mãi pediu á alma de meu pai que lhe alcançasse do Senhor uma vida longa para meu amparo. Ouviu-a Deus, porque eu vi um milagre na rapida convalescença com que minha mãi sahiu d'uma enfermidade de quatro annos. «Eu vi um dia um homem no quarto de meu irmão, onde entrei como entrava sempre sem receio de encontrar um desconhecido. Quiz retirar-me, e meu irmão chamou-me para me apresentar, pela primeira vez na sua vida, um homem. «Este homem chama-se Vasco de Seabra. «Não sei se por orgulho, se por acaso, meu irmão chamou a conversa ao campo da litteratura. Fallava-se em romances, em dramas, em estilos, em escólas, e não sei que outros mais assumptos ligeiros e graciosos que me captivaram o coração e a cabeça. «Vasco fallava bem, e revelava cousas que me não eram novas com estilo novo. N'aquelle homem, via-se o genio aformoseado pela arte que só na sociedade se adquire. Em meu irmão faltava-lhe o relevo de estilo, que se lapida ao tracto dos maus e dos bons. Bem sabes Carlos, que te digo uma verdade, sem pretenções de _bas-bleu_, que é de todas as miserias a mais lastimosa miseria das mulheres cultivadas. «Vasco retirou-se, e eu quizera antes que elle se não retirasse. «Disse-me meu irmão que aquelle rapaz era uma intelligencia superior, mas depravada pelos maus costumes. A razão porque elle viera a nossa casa era muito simples; encarregara-o seu pai de fallar com meu irmão a respeito da remissão d'uns fóros. «Vasco passou n'esse dia por debaixo das minhas janellas: fixou-me, cortejou-me, corei, e não me atrevi a seguil-o com os olhos, mas segui-o com o coração. Que suprema miseria, Carlos! Que renuncia tão impensada faz uma mulher da sua tranquillidade! «Voltou um quarto d'hora depois: retirei-me, sem querer mostrar-lhe que o percebia; fiz-me distrahida, por entre as cortinas, a contemplar a marcha das nuvens, e das nuvens descia um olhar precipitado sobre aquelle _indifferente_ que me fazia córar e soffrer. Viu-me, adivinhou-me, talvez, e cortejou-me ainda. Eu vi o gesto da cortezia, mas fingi-me, e não lhe correspondi. Foi isto um heroismo, não é verdade? Seria; mas eu tive remorsos, apenas elle desapparecera, de o tratar tão grosseiramente. «Demorei-me n'estas puerilidades, meu amigo, porque não ha nada mais grato para nós que a recordação dos ultimos instantes de ventura a que se prendem os primeiros instantes da desgraça. «Aquellas linhas fastidiosas são a historia da minha transfiguração. Ahi principia a longa noite da minha vida. «Nos dias immediatos, a horas certas, vi sempre este homem. Concebi os perigos da minha fraqueza, e quiz ser forte. Resolvi não vêl-o mais: revesti-me d'um orgulho digno da minha immodesta superioridade ás outras mulheres: sustentei este caracter dous dias; e, ao terceiro, era fraca como todas as outras. «Eu já não podia divorciar-me da imagem d'aquelle homem, d'aquellas nupcias infelizes, que meu coração contrahira. O meu instincto não era mau; porque a educação tinha sido boa; e, não obstante a humildade constante com que sempre sujeitei a minha mãi os meus innocentissimos desejos, senti-me então, com magoa minha, rebelde, e capaz de conspirar contra a minha familia. «A frequente repetição dos passeios de Vasco não podia ser indifferente a meu irmão. Fui suavemente interrogada por minha mãi, a tal respeito, e respondi-lhe com respeito, mas sem temor. Meu irmão presentiu a necessidade de matar aquella inclinação nascente, e expoz-me um quadro feio dos costumes pessimos de Vasco, e o conceito publico em que era tido o primeiro homem a quem eu tão francamente me offerecia em namoro. Fui altiva com meu irmão, e adverti-lhe que os nossos corações não tinham contrahido a obrigação de se consultarem. «Meu irmão soffreu; eu tambem soffri; e, passado o momento da exaltação, quiz cerrar a ferida que abrira n'aquelle coração, desde a infancia, identificado com as minhas vontades. «Este sentimento era nobre; mas o do amor era inferior. Se eu podesse reconcial-os ambos! Não podia, nem sabia fazel-o! Uma mulher, quando principia a sua dolorosa tarefa do amor, não sabe mentir com apparencias, nem calcula os prejuizos que póde evitar com uma pouca de impostura. Eu fui assim. Deixei-me hir abandonada á correnteza, da minha inclinação; e, quando forcejei por me tornar, tranquilla, á isenção da minha alma, não pude vencer a corrente. «Vasco de Seabra perseguia-me: as cartas eram incessantes, e a grande paixão que ellas exprimiam não era ainda igual á paixão que me faziam. «Meu irmão quiz tirar-me de Lisboa, e minha mãi instava pela sahida, ou pela minha entrada a toda a pressa nas Silesias. Informei Vasco das intenções de minha familia. «No mesmo dia, este homem, que me pareceu um cavalheiro digno d'outra sociedade, entrou em minha casa, pediu-me urbanamente a minha mãi, e foi urbanamente repellido. Eu sube-o, e torturei-me! Não sei do que seria então capaz a minha alma offendida! Sei que foi capaz de tudo que póde caber em forças d'uma mulher, contrariada nas ambições que nutrira, sosinha comsigo, e conjurada a perder-se por ellas. «Vasco irritado d'um nobre estimulo, escreveu-me, como quem me pedia a mim a satisfação dos despresos de minha familia. Respondi-lhe que lh'a dava plena, como elle a exigisse. Disse-me que fugisse de casa, pela porta da deshonra, e muito cedo entraria n'ella com a minha honra illibada. Que desgraça! n'aquelle tempo até as pompas do estilo me seduziam!... Respondi que sim, e cumpri. «Meu amigo Carlos. Vai longa a carta, e a paciencia é curta. Até ao correio que vem. _Henriqueta_.» VI. Carlos relêra com sofrega anciedade, a singela expansão d'uma alma que, talvez, nunca se abrira, se a não rasgasse o espinho d'um martyrio surdo. Henriqueta não escrevia assim uma carta a um homem, que podesse consolal-a. Afeita a gemer no silencio, e na solidão, tornava-se como egoista das suas dôres, e suppunha que divulgal-as era esfolhar a mais bella flôr da sua corôa de martyr. Escreveu, porque a sua carta era um mytho de segredo e publicidade; porque a sua afflicção não rastejava pelos queixumes lamuriantes e triviaes d'um grande numero de mulheres, que não choram nunca a viuvez do coração, e lastimam sempre a demora das segundas nupcias; escreveu em fim, porque a sua dôr, sem deshonrar-se com uma publicidade esteril, interessava um coração, esposava uma sympathia, um soffrimento simultaneo, e, quem sabe mesmo, se uma nobre admiração! Ha mulheres vaidosas--deixem-me assim dizer--da fidalguia do seu soffrer. Risonhas para o mundo, é muito sublime aquella angustia represada que só póde extravasar os sobejos do seu fel em uma carta anonyma. Lagrimosas para si, e fechadas no circulo estreito, que a sociedade lhes traça com o compasso inexoravel das conveniencias, essas sim, são duas vezes anjos despenhados! Quem podesse receber na taça de suas lagrimas algumas, que ahi se choram, e que a opulencia material não enxuga, experimentaria consolações d'um sabor novo. O padecimento, que se esconde, impõe o respeito religioso do augusto mysterio d'esta religião universal, symbolisada pelo soffrimento commum. O homem, que podesse verter uma gota de orvalho na aridez d'algum coração, seria o sacerdote providencial no tabernaculo d'um espirito superior, que velasse a vida da terra para que tamanhas agonias não fossem estereis na vida do céo. Não ha na terra mais gloriosa missão! Carlos por tanto, sentiu-se feliz d'este orgulho santo que ennobrece a consciencia do homem que recebe o privilegio d'uma confidencia. Esta mulher, dizia elle, é para mim um ente quasi phantastico. Allivios quaes são os que eu posso dar-lhe?... Nem ao menos escrever-lhe!... E ella... em que fará consistir o seu prazer?! Deus o sabe! Quem póde explicar, e mesmo explicar-se a singularidade d'um proceder, ás vezes, inconcebivel? ........................................................................... No correio proximo, recebeu Carlos a segunda carta de Henriqueta: «Que imaginaste, Carlos, depois da leitura da minha carta? Adivinhaste o resto, com prestesa natural. Recordaste mil aventuras d'este genero, e amoldaste a minha historia ás legitimas consequencias de todas as aventuras. Julgaste-me abandonada pelo homem, com quem fugira, e chamaste a isto, talvez, uma deducção contida nos principios. «Pensaste bem, amigo, a logica da desgraça é essa, e o contrario dos teus juizos é o que se chama sophisma, porque eu estou em pensar que a virtude é o absurdo da logica dos factos, é a heresia da religião das sociedades, é a aberração monstruosa das leis, que regem o destino do mundo. Achas-me metaphysica de mais? Não te impacientes. A dôr refugia-se nas abstracções, e encontra melhor pabulo na Loucura de Erasmo, que nas sisudas deducções de Montesquieu. «Minha mãi estava reservada para uma grande provação! Amparou-a Deus n'aquelle golpe, e permittiu-lhe uma energia que não era de esperar. Vasco de Seabra bateu ás portas de todas as igrejas de Lisboa, para me apresentar, como sua mulher, ao cura da freguezia, e achou-as fechadas. Eramos perseguidos, e Vasco não contava com a sua superioridade sobre meu irmão, que lhe fizera certa e infallivel a morte, onde quer que a fortuna lh'o deparasse. «Fugimos de Lisboa para Hespanha. Um dia entrou Vasco, alvoroçado, pallido, e febril d'aquella febre de medo, que, realmente, era, até então, a unica face prosaica do meu amante. Emmulamos a toda a pressa, e partimos para Londres. É que Vasco de Seabra vira meu irmão em Madrid. «Vivemos em um bairro retirado de Londres. Vasco tranquillisou-se, porque lhe afiançaram de Lisboa a volta de meu irmão, que perdera as esperanças de encontrar-me. «Se me perguntas como era a vida intima d'estes dous fugitivos, aos quaes não faltava condição alguma das aventuras romanticas d'um rapto, dir-t'a-hei em poucas linhas. «O primeiro mez das nossas nupcias de emboscada foi um sonho, uma febre, uma anarchia de sensações que, levadas ao extremo do goso, pareciam tocar as raias do soffrimento. Vasco parecia-me um Deus, com as seductoras fraquezas d'um homem; queimava-me com o seu fogo, divinisava-me com o seu espirito; levava-me de mundo em mundo á região dos anjos onde a vida deve ser o extasis, o arrobamento, a alienação com que a minha alma se derramava nas sensações ardentissimas d'aquelle homem. «No segundo mez, Vasco de Seabra disse-me pela primeira vez «que era muito meu amigo.» O coração pulsava-lhe vagaroso, os olhos não faiscavam electricidade, os sorrisos eram frios... os meus beijos já os não aqueciam n'aquelles labios! «Sinto por ti uma sincera estima.» Quando isto se diz, depois d'um amor vertiginoso, que não sabe as phrases triviaes, a paixão está morta. E estava... «Depois, Carlos, fallavamos em litteratura, analysavamos as operas, discutiamos o merito dos romances, e viviamos em academia permanente, quando Vasco me não deixava quatro, cinco, e seis horas entregue ás minhas innocentes recreações scientificas. «Vasco cançara-se de mim. A consciencia affirmou-me esta verdade atroz. Suffoquei a indignação, as lagrimas, e os gemidos. Soffri sem limites. Abrasou-se-me na alma um inferno que me coava fogo nas vêas. Não houve nunca mulher assim desgraçada! «E vivemos assim dezoito mezes. A palavra «casamento» foi banida de nossas curtas conversações... Vasco desquitava-se de compromissos, que elle chamava parvos. Eu mesma, de bom grado, o remia de ser o meu escravo, como elle intitulava o nescio, que se deixava algemar ás obscuras superstições do setimo sacramento... Foi ahi que Vasco de Seabra encontrou a Sophia que te apresentei no real theatro de S. João, na primeira ordem. «Comecei então a pensar em minha mãi, em meu irmão, na minha honra, na minha infancia, na memoria deslustrada de meu pai, na tranquillidade de minha vida até ao momento em que me atirei á lama e salpiquei com ella a face da minha familia. «Peguei da penna para escrever a minha mãi. Escrevera a primeira palavra, quando comprehendi o vexame, a degradação, e a villania com que ousava apresentar-me áquella virtuosa senhora, com a face manchada de nodoas, contagiosas. Repelli com nobreza esta tentação, e desejei n'aquelle instante, que minha mãi me julgasse morta. «Em Londres viviamos n'uma hospedaria, depois que Vasco perdeu o medo a meu irmão. Viera ahi hospedar-se uma familia portugueza. Era o visconde do Prado, e sua mulher, e uma filha. O visconde relacionou-se com Vasco, e a viscondessa e sua filha visitaram-me, tractando-me como irmã de Vasco. «Agora, Carlos, esquece-te de mim, e satisfaz a tua curiosidade na historia d'esta gente, que já conheceste no camarote da 2.^a ordem. «Mas não posso agora dispor de mim... Saberás, alguma vez, a razão porque não pude continuar esta carta. «Adeus, até outro dia, _Henriqueta_.» VII. «Cumpro religiosamente as minhas promessas. Tu não avalias o sacrificio que faço. Não importa. Como não quero captivar a tua gratidão, nem, mesmo ainda, mover a tua piedade, basta-me a consciencia do que sou para ti, que é (medita bem) o mais que posso ser... «A historia... não é assim? Principia agora. «Antonio Alves era um pobre amanuense do escriptorio de um tabellião de Lisboa. Casou, e reuniu ao infortunio de casar a desgraça de ser pai. O tabellião morreu, e Antonio Alves, privado dos escassos lucros de amanuense, luctou com a fome. A mulher por um lado com a filhinha ao collo, e elle pelo outro com as lagrimas da indigencia, conseguiram algumas moedas, e com ellas a passagem do pobre marido para o Rio de Janeiro. «Foi, e deixou entregues á Providencia a mulher e a filha. «Josepha esperava todos os dias carta de seu marido. Nem carta, nem um indicio da sua existencia. Julgou-se viuva, vestiu-se de preto, e viveu de esmolas, pedidas á noite na _praça do Rocio_. «A filha chamava-se Laura, e crescera bella, não obstante as angustias da fome, que transformam a formosura do berço. «Aos quinze annos de Laura, já sua mãi não mendigava. A deshonra proporcionara-lhe abundancia que uma honrosa mendicidade lhe não dera. Laura era amante d'um rico, que cumpria fielmente com a mãi as condicionaes estipuladas na escriptura de venda da filha. «Um anno depois, Laura explorava outra mina. Josepha não soffria com as vicissitudes da filha, e continuava a gosar os fins da vida á sombra de tão fecunda arvore. «A indigencia, e a sociedade fizeram-lhe comprehender que só ha deshonra na fome e na nudez. «Outro anno depois, a radiosa Laura declarou-se o premio do cavalleiro, que mais airoso entrasse no torneio. «Concorreram muitos gladiadores, e parece que todos foram premiados, porque todos esgrimiam galhardamente. «Desgraça foi para Laura, quando os melhores campeões se retiraram fatigados da liça. Os que vieram depois eram bisonhos no jogo das armas, e viram que a dama das justas já não valia a pena de perigosos botes de lança, e de arreios muito custosos de pedraria e ouro. «Pobre Laura, apeada do seu pedestal, olhou-se a um espelho, viu-se ainda bella com vinte e cinco annos, e perguntou á sua consciencia a baixa do preço com que corria no leilão de mulheres. A consciencia respondeu-lhe que descesse da altura das suas ambições, que viesse para onde a chamava a logica da sua vida, e continuaria a ser rainha n'um reino de segunda ordem, já que a exauthoravam d'um throno que tivera na primeira. «Laura desceu, e encontrou uma sociedade nova. Acclamaram-na soberana, reuniu-se uma côrte tumultuosa na ante-camara d'esta odalisca facil, e não houve grande nem pequeno a quem se baixassem os reposteiros do throno. «Laura viu-se um dia abandonada. Viera uma outra disputar-lhe a sua legitimidade. Os cortezãos voltaram-se para o sol nascente, e apedrejaram, como os incas, o astro que se escondia para alumiar os antipodas d'um outro mundo. «Os antipodas d'um outro mundo eram uma sociedade inculta, sem a intelligencia da arte, sem o culto á formosura, sem as opulencias que o ouro cria nas altas regiões da civilisação, e, finalmente, sem algum dos attributos, que Laura amára tanto nos mundos, onde fôra soberana duas vezes. «A infeliz tinha descido ao derradeiro grau de aviltamento; mas era bella ainda. Sua mãi, enferma n'um hospital, pedia a Deus, como esmola, a sua morte. A desgraçada foi punida. «No hospital, viu passar sua filha diante do seu leito; pediu que a deitassem ao pé de si; o enfermeiro riu-se; e entrou com ella n'outra enfermaria, onde o anjo do pudor e o das lagrimas cobriam o rosto na presença da ulcera mais esqualida, e mais lastimosa do genero humano. «Laura principiava a sondar a profundidade do abysmo em que cahira. «Sua mãi recordava as fomes d'outro tempo, quando sua filha, virgem ainda, chorava e supplicava, com ella, uma esmola ao passageiro. «As privações de então eram semelhantes, ás privações de agora, com a differença, porém, que a Laura de hoje, deshonrada e repelida, não podia já prometter o futuro da Laura de então. «Agora, Carlos, vejamos o que é o mundo, e pasmemos diante das evoluções gymnasticas dos acontecimentos. «Apparece em Lisboa um capitalista, que chama a attenção dos capitalistas, a consideração do governo, e, por via de regra, desafia inimisades politicas, e invejas, que procuram o seu principio de vida para denegrir-lhe o luzimento da sua affrontosa opulencia. «Este homem compra uma quinta na provincia do Minho, e, mais barato ainda, compra o titulo de visconde do Prado. «Um jornal de Lisboa, que traz entre os dentes venenosos da politica o pobre visconde, escreve um dia um artigo, onde se acham, entre muitas, as seguintes allusões: «O snr. visconde do Prado adscreveu á immoralidade do governo a immoralidade da sua fortuna. Como ella foi adquirida, dil-o-hiam as costas d'Africa se os sertões contassem os horrorosos dramas da escravatura, em que o snr. visconde foi heroe. ........................................................................... «O snr. visconde do Prado era Antonio Alves ha 26 annos, e a pobre mulher que deixou em Portugal, com uma tenra filhinha ao collo, ninguem dirá em que rua morreu de fome sobre as lages, ou em que agua-furtada curtiram ambas as agonias da fome, em quanto o snr. visconde medrava cynicamente na hydropisia do ouro, com que hoje vem arrotar moralidades no theatro das suas infamias de esposo e de pai................ «Melhor fôra que o snr. visconde indagasse onde repousam os ossos de sua mulher, e de sua filha, e nos pozesse ahi um padrão de marmore, que possa attestar ao menos o remorso d'um infame contricto... «Este insulto directo, e fundamentado, ao visconde do Prado, fez ruido em Lisboa. As edições do jornal espalharam-se, e leram-se, e commentaram-se com frenetica maldade. «Ás mãos de Laura chegou este jornal. Sua mãi, ouvindo lêl-o, delirou. A filha cuidou que sonhava; e a situação de ambas perderia muito se eu tentasse roubar-lhe as côres vigorosas da tua imaginação. «No dia seguinte, Josepha e Laura entravam no palacete do visconde do Prado. O porteiro respondeu que s. exc.^a não estava ainda a pé. Esperaram. Ás 11 horas sahia o visconde, e, ao saltar para a carruagem, viu duas mulheres que se aproximavam. Metteu a mão ao bolso do collete, e tirou doze vintens que lançava na mão de uma das duas mulheres. Olhou admirado para ellas, quando viu que a esmola lhe era recusada. «--Que querem?--interrogou elle, com soberba indignação. «--Quero vêr meu marido que não vejo, ha 26 annos...--respondeu Josepha. «O visconde estacou ferido d'um raio. O suor gotejava-lhe na testa em bagas frias. Laura aproximou-se, em attitude de beijar-lhe a mão... «--Pois que?...--interpellou o visconde. «--Sou sua filha...--respondeu Laura com humildoso respeito. «O visconde, aturdido e parvo, voltou as costas á carruagem, e mandou ás duas mulheres que o seguissem. «O resto no correio seguinte.--Adeus, Carlos. _Henriqueta_.» VIII. «Carlos, tenho quasi tocado a extrema d'esta minha peregrinação. A minha illiada está no ultimo canto. Quero dizer-te que é esta a minha penultima carta. «Não sou tão independente como pensava. A não serem os poetas, ninguem gosta de contar as suas magoas ao vento. É bello dizer-se, que um gemido nas azas da brisa vai da terra em dorido suspirar até ao côro dos anjos. É bonito conversar com a fonte suspirosa, e contar á avesinha gemedôra os segredos do nosso penar. Tudo isto é delicioso d'uma puerilidade inoffensiva; mas eu, Carlos, não tenho alma para estas cousas, nem engenho para estes artificios. «Vou contando as minhas penas a um homem, que não póde zombar de minhas lagrimas, sem trahir a generosidade do seu coração, e a sensibilidade do talento Sabes qual é o meu egoismo, o meu estipendio n'este trabalho, n'esta franqueza d'alma, que ninguem te póde disputar como unico em merecêl-a? Eu te digo. Quero uma carta tua, dirigida a Angelica Michaela. Diz-me o que a tua alma te disse; não tenhas pejo em denuncial-a; associa-te um momento á minha dôr, e dize-me o que farias se tivesses sido Henriqueta. «Aqui tens o prologo d'esta carta: agora vamos espreitar o lance extraordinario d'aquelle encontro, em que deixamos o visconde e a... como hei-de chamar-lhe?... a viscondessa, e sua exc.^{ma} filha D. Laura. «--Pois é possivel existires?--perguntava o visconde, sinceramente admirado, a sua mulher. «--Pois não me conheces, Antonio?--respondia ella com estupida naturalidade. «--Tinham-me dito que morreras...--tornou elle com desazada hypocrisia--tinham-me dito, ha dezesete annos, que tu e a nossa filha tinheis sido victimas da cholera-morbus... «--Felizmente que lhe mentiram--interrompeu Laura com affectada meiguice.--Nós é que lhe tinhamos resado por alma, e nunca deixamos de pronunciar o seu nome sem saudosas lagrimas. «--Como tendes vivido?--perguntou o visconde. «--Pobre, mas honradamente--respondeu Josepha, dando-se uns ares austeros, e pondo os olhos em branco, como quem invoca o céo por testemunha. «--Ainda bem!--tornou o visconde--mas que modo de vida tem sido o vosso? «--O trabalho, meu querido Antonio, o trabalho de nossa filha tem sido o amparo da sua honra, e da minha velhice. Tu abandonaste-nos com tamanha crueldade!... Que mal te fizemos nós? «--Nenhum, mas não vos disse eu que vos considerava mortas?--respondeu o visconde a sua mulher, que tivera a habilidade de arrancar duas volumosas lagrimas, tanto a proposito. «--O passado, passado--disse Laura, afagando carinhosamente as mãos paternas, e dando-se uns ares de innocencia capazes de illudir S. Simão Stylita.--Quer o pai saber (proseguiu ella com sentimento) qual tem sido a minha vida? Olhe, meu pai, não se envergonhe da posição social em que encontra sua filha... Tenho sido modista, tenho trabalhado incessantemente... tenho luctado com as tentações da penuria, e tenho feito consistir em minhas lagrimas o meu triumpho... «--Bem, minha filha--interrompeu o visconde com sincera contrição--esqueçamos o passado.... D'hora em diante será a abundancia a premio da tua virtude... Ora diz-me: o mundo sabe que tu és minha filha?... disseste a alguem que eu era teu marido, Josepha? «--Não, meu pai.--Não meu Antoninho.--Responderam ambas, como se tivessem previsto e calculado as perguntas e as respostas. «--Pois bem--continuou o visconde--vamos a conciliar com o mundo as nossas posições presentes, passadas e futuras. D'hora ávante, Laura, és minha filha, és filha do visconde do Prado, e não pódes chamar-te Laura. Serás Elisa, comprehendes-me? é necessario que te chames Elisa... «--Sim, meu pai... eu serei Elisa--atalhou a _innocente modista_ com impetuosa alegria. «--É necessario abandonar Lisboa--proseguiu o visconde. «--Sim, sim, meu pai... vivamos num sertão... quero gosar, sosinha, na presença de Deus a felicidade de ter pai... «--Não hiremos para um sertão... vamos para Londres; mas... attendam-me... é preciso que ninguem as veja, n'estes primeiros annos, principalmente em Lisboa... A minha posição actual é muito melindrosa. Tenho muitos inimigos, muitos invejosos, muitos infames, que procuram perder-me no conceito que pude comprar com o meu dinheiro. Estou farto de Lisboa; partiremos no primeiro paquete... Josepha, repara em ti, e vê que és a viscondessa do Prado. Elisa, a tua educação foi desgraçadamente mesquinha para te poderes mostrar qual eu quero que sejas na alta sociedade. Voltaremos um dia, e terás então supprido com a educação pratica a rudeza que indispensavelmente tens. «Não progrido, n'este dialogo, Carlos. O programma do visconde foi rigorosamente cumprido. «Aqui tens os precedentes que prepararam o meu encontro, em Londres, com esta familia. Vasco de Seabra, quando viu, pela primeira vez, a filha do visconde atravessar um corredor do hotel, fixou-a com pasmo, e veio dizer-me que acabava de vêr, elegantemente trajada, uma mulher que conhecera em Lisboa, chamada Laura. Acrescentou varias circumstancias da vida d'esta mulher, e acabou por mostrar vivos desejos de saber o tolo opulento, a quem tal mulher estava associada. «Vasco pediu a lista dos hospedes, e viu que os unicos portuguezes eram Vasco de Seabra e _sua irmã_, e o visconde do Prado, a sua mulher, e sua filha D. Elisa Pimentel. «Redobrou o seu pasmo, e chegou a convencer-se d'uma illusão. «No seguinte dia, o visconde encontrou-se com Vasco, e alegrou-se de ter encontrado um patricio, que lhe explicasse aquelles gritos barbaros dos serventes do hotel, que lhe davam agua por vinho. Vasco não duvidou em ser interprete do visconde, com tanto que as suas luzes em lingua ingleza podessem chegar ao escondrijo d'onde nunca mais vira sahir a supposta Laura. «Correram as cousas á medida do seu desejo. Na noite d'esse dia, fomos convidados para tomar chá, na saleta do visconde. Eu hesitei, sem saber ainda se Laura seria familiar do visconde. Vasco, porém, despreveniu-me d'este temor, afiançando-me que se tinha illudido com a semelhança das duas mulheres. «Fui. Elisa pareceu-me uma menina bem educada. Nunca o artificio tirou maior partido das maneiras adquiridas em habitos libertinos. Elisa era a mulher de côrte, com os ademans fascinadores dos salões, onde a immoralidade do coração passeia de braço dado com a illustração do espirito. O som da palavra, a escolha da phrase, a compostura airosa da mimica, o tom sublime em que as suas idêas eram voluptuosamente lançadas na torrente de uma conversação animada, tudo isto me fez crêr que Laura era a primeira mulher que eu tinha encontrado, talhada á feição do meu espirito. «Quando agora pergunto á minha consciencia como estas transições se fazem, descreio da educação, lamento os annos consumidos no cultivo da intelligencia, e chego a persuadir-me que a escóla da devassidão é a ante-camara por onde mais facil se entra no mundo da graça e da civilisação. «Perdôa-me o absurdo, Carlos; mas ha mysterios na vida, que só pelo absurdo se explicam. _Henriqueta_.» IX. «Li a tua carta, Carlos, com os olhos cheios de lagrimas, e o coração de reconhecimento. Não esperava tanto da tua sensibilidade. Fiz-te a injustiça de te julgar infeccionado d'este marasmo de egoismo que entorpece o espirito, e calcina o coração. E, de mais, suppunha-te insensivel pelo facto de seres intelligente. Eis-aqui um disparate, que eu não ousaria balbuciar na presença do mundo. O que vale é que as minhas cartas não serão lidas pelas mediocridades, que se acham em concilio permanente para condemnar, em nome de não sei que tolas conveniencias, as heresias do genio. «Deixa-me dizer-te francamente o juizo que eu fórmo do homem transcendente em genio, em estro, em fogo, em originalidade, finalmente em tudo isso que se inveja, que se ama, e que se detesta, muitas vezes. «O homem de talento é sempre um mau homem. Alguns conheço eu que o mundo proclama virtuosos, e sabios. Deixal-os proclamar. O talento não é a sabedoria. Sabedoria é o trabalho incessante do espirito sobre a sciencia. O talento é a vibração convulsiva do espirito, a originalidade inventiva e rebelde á authoridade, a viagem extatica pelas regiões incognitas da idêa. Santo Agostinho, Fenelon, Madame de Stael, e Bentham são sabedorias. Luthero, Ninon de Lenclós, Voltaire e Byron são talentos. Compara as vicissitudes d'essas duas mulheres, e os serviços prestados á humanidade por esses homens, e terás encontrado o antagonismo social em que luctam o talento com a sabedoria. «Porque é mau o homem de talento? Essa bella flôr porque tem no seio um espinho envenenado? Essa esplendida taça de brilhantes e ouro porque é que contem o fel, que abrasa os labios de quem a toca? «Aqui tens um thema para trabalhos superiores á cabeça d'uma mulher, ainda mesmo reforçada por duas duzias de cabeças academicas! «Lembra-me ouvir dizer a um doudo que soffria por ter talento. Pedi-lhe as circumstancias do seu martyrio sublime, e respondeu-me o seguinte com a mais profunda convicção, e a mais tocante solemnidade philosophica: Os talentos são raros, e os estupidos são muitos. Os estupidos guerream barbaramente o talento: são os vandalos do mundo espiritual. O talento não tem partido n'esta peleja desigual. Foge, dispara na retirada um tiroteio de sarcasmos pungentes, e, por fim, isola-se, segrega-se do contacto do mundo, e curte em silencio aquelle fel de vingança, que, mais cedo ou mais tarde, cospe na cara d'algum inimigo, que encontra desviado do corpo do exercito. «Ahi tem--acrescentou elle--a razão porque o homem de talento é perigoso na sociedade. O odio inspira-lhe a eloquencia da traição. A mulher, que lhe ouve o astucioso hymno das suas apaixonadas lamurias, acredita-o, abandona-se, perde-se, e retira-se, por fim, gritando contra o seu algoz, e pedindo á sociedade que grite com ella. «Agora, diz-me tu, Carlos, até que ponto devemos acreditar este doudo. Eu por mim não me satisfaço com o seu systema, todavia sinto-me propensa a aperfeiçoar o prisma do doudo, até encontrar as côres inalteraveis do juizo. «Seja o que fôr, eu creio que és uma excepção e não soffra com isto a tua modestia. A tua carta fez-me chorar, e acredito que soffrias, escrevendo-a. Has-de continuar a visitar-me espiritualmente na minha Thebaida, sem cilicios, sim? «Agora conclua-se a historia, que leva seus visos de folhetim philosophico, moral, social, e não sei que mais por ahi se diz, que não vale nada. «Contrahi amisade com a filha do visconde do Prado. Não era ella, porém, tão intima, que me levasse a declarar-lhe que Vasco de Seabra não era meu irmão. Por elle me fôra imposto, como preceito, o segredo de nossas relações. Bem longe estava eu de comprehender este zelo de virtuosa honestidade, quando a mão d'um demonio me tirou a venda dos olhos. «Vasco amava Laura!! Eu puz dous pontos de admiração, mas acredita que foi uma urgencia rhetorica, uma composição artistica, que me obrigou a admirar-me, escrevendo, de cousas que me não admiram, pensando. «Que é o que levou tão depressa este homem a aborrecer-me, pobre mulher, que despresei o mundo, e me despresei a mim propria para satisfazer-lhe o capricho d'alguns mezes? Foi uma miseria que ainda hoje me envergonha, supposto que esta vergonha devesse ser um reflexo das faces d'elle... Vasco amava a filha do visconde do Prado, a _Laura_ d'alguns mezes antes, porque a Elisa d'hoje era a herdeira de não sei quantos centos de contos de reis. «Devo envergonhar-me de ter amado este homem, nao é verdade, Carlos? Não devo soffrer um instante a perda d'um miseravel, que eu vejo d'aqui com uma grilheta d'ouro algemada a uma perna, tapando em vão os ouvidos para não ouvir-lhe o ruido... a sentença do forçado que o segue até ao fim d'uma existencia farta de opprobrio, e celebre de infamias! «E não soffro, Carlos! Tenho aqui no seio uma ulcera que não tem cura... choro, porque é intensa a dôr que ella me causa... mas, olha, não tenho lagrimas que não sejam remorsos... não tenho remorsos que não sejam picados pela affronta que fiz a minha mãi, e a meu irmão... Não me doe o meu proprio aviltamento, não! Se em minha alma cabe algum enthusiasmo, algum desejo, é o enthusiasmo da penitencia, é o desejo de torturar-me... «Fugi tanto da historia, meu Deus!... Desculpa estes desvios, meu paciente amigo!... Eu queria correr muito sobre o que me falta, e hei-de conseguil-o, porque não posso parar, e temo de me converter em estatua, como a mulher de Loth, quando olho com attenção para o meu passado... «O visconde do Prado convidou Vasco de Seabra a ser seu genro. Vasco não sei como recebeu o convite; o que eu sei é que os vinculos d'estas relações estreitaram-se muito, e Elisa, desde esse dia, expandiu-se comigo em intimidades do seu passado, todas mentirosas. Estas intimidades eram o prologo d'outra que tu avaliarás. Foi ella a propria que me disse que esperava ainda poder chamar-me irmã! Isto é uma atrocidade sublime, Carlos! Diante d'essa dôr calam-se todas as agonias possiveis! O insulto não podia ser mais despedaçador! O punhal não podia entrar mais dentro no virtuoso coração da pobre amante de Vasco de Seabra!... Agora, sim, que eu quero a tua admiração, meu amigo! Tenho direito á tua compaixão, se não pódes estremecer de enthusiasmo diante do heroismo d'uma martyr! Ouvi este annuncio dilacerante!... Senti fugir-me o entendimento... aquella mulher suffocou-me a voz na garganta... horrorisei-me não sei se d'ella, se d'elle, se de mim... Nem uma lagrima!... acreditei-me douda... Senti-me estupida d'aquelle idiotismo pungente que faz chorar os estranhos, que nos vêem nos labios um sorriso de imbecilidade... «Elisa parece que recuou aterrada da expressão da minha physionomia... Fez-me não sei que perguntas... não me lembro mesmo se aquella mulher permaneceu diante de mim... Basta!... não posso prolongar esta situação... «Na tarde d'esse mesmo dia, chamei uma creada da hospedaria. Pedi-lhe que me vendesse algumas joias de pouco valor que eu possuia; eram minhas; minhas não... eram um roubo que eu fiz a minha mãi. «Na manhã do dia seguinte, quando Vasco, depois de almoço, visitava o visconde do Prado, escrevi estas linhas: «Vasco de Seabra não póde gloriar-se de ter deshonrado Henriqueta de Lencastre. Esta mulher sentia-se digna d'uma corôa de virgem, virgem do coração, virgem na sua honra, quando abandonava um villão, que não pôde infectar da sua infamia o coração da mulher, que arrastou ao abysmo da sua lama, sem lhe salpicar a cara. Foi a Providencia que a salvou!» «Deixei este escripto sobre as luvas de Vasco, e fui á estação dos caminhos de ferro. «Dous dias depois entrava n'um paquete. «Ao vêr a minha patria, cobri o rosto com as mãos, e chorei... Era a vergonha e o remorso. Diante do Porto senti uma inspiração do céo. Saltei n'uma catraia, e pouco depois achava-me n'esta terra, sem um conhecimento, sem um apoio, e sem subsistencia para muitos dias. «Entrei em casa d'uma modista, e pedi obra. Não m'a negou. Aluguei uma agua-furtada, onde trabalho ha quatro annos; onde, ha quatro annos, comprimo bem aos rins, segundo a linguagem antiga, os cilicios do meu remorso. «Minha mãi e meu irmão vivem. Julgam-me morta, e eu peço a Deus que não haja um indicio da minha vida. Sê-me tu fiel, meu generoso amigo, não me denuncies, pela tua honra, e pela sorte de tuas irmãs. «Tu sabes o resto. Ouviste, no theatro, Elisa. Foi ella a que disse que seu marido a abandonára, chamando-lhe _Laura_. Aquella está punida... «Sophia... (lembras-te de Sophia?) essa é uma pequena aventura, que aproveitei para tornar menos insipidas aquellas horas, em que me acompanhaste... Foi uma rival que não honra ninguem... uma _Laura_ com os respeitos publicos, e as considerações que se barateiam a corpos ulcerosos, com tanto que se vistam de veludos matizados. Ainda eu era feliz, quando o infame amante d'essa mulher me dava aquelle annel, que viste, como oblação de sacrificio que me fazia d'uma rival... «Escreve-me. «Has-de ouvir-me no proximo carnaval. «Por ultimo, Carlos, deixa-me fazer-te uma pergunta: «Não me achas mais defeituosa que o nariz d'aquella andaluza da historia, que te contei? _Henriqueta_.» X. É natural a exaltação de Carlos, depois de erguido o véo, em que se escondiam os mysterios de Henriqueta. Alma apaixonada pela poesia do bello, e pela poesia da desgraça, Carlos não teve nunca impressão na vida, que mais lhe incendiasse uma paixão! As cartas a Angela Michaela eram o desafogo do seu amor sem esperança. Os mais ferventes extasis da sua alma de poeta, imprimiu-os n'aquellas cartas escriptas, debaixo de uma impressão, que lhe roubava a tranquilidade do somno, e o refugio d'outros affectos. Henriqueta respondera concisamente ás explosões d'um delirio, que nem sequer a fazia tremer pelo seu futuro. Henriqueta não podia amar. Arrancaram-lhe pela raiz a flôr do coração. Esterilisaram-lhe a arvore dos bellos fructos, e envenenaram-lhe de sarcasmo e ironia os instinctos do carinho brando, que acompanham a mulher até á sepultura. Carlos não podia supportar uma repulsa nobre. Persuadira-se que havia um estalão moral para todas. Confiava no seu ascendente, em não sei que mulheres, entre as quaes lhe não fôra penoso nunca fixar o dia do seu triumpho. Homens assim, quando encontram um estorvo, apaixonam-se seriamente. O amor-proprio, angustiado nos apertos d'uma impossibilidade invencivel, adquire uma nova feição, e converte-se em paixão, como as paixões primeiras, que nos sopram a tempestade no limpido lago da adolescencia. Carlos, em ultimo recurso, precisava saber onde morava Henriqueta. No lance extremo d'um desafogo, hiria elle, audacioso, humilhar-se aos pés d'aquella mulher, que a não poder amal-o, choraria com elle ao menos. Estas preciosas futilidades escaldavam-lhe a imaginação, quando lhe occorreu a astuciosa lembrança de surprehender a morada de Henriqueta surprehendendo a pessoa que no correio lhe tirava as cartas, subscriptadas a Angela Michaela. Conseguido o compromettimento d'um empregado do correio, Carlos empregou n'esta missão um vigia insuspeito. No dia de correio, uma velha, mal trajada, pediu a carta n.^o 628. O que a entregou fez um signal a um homem, que passeava no corredor, e este homem seguiu de longe a velha até ao campo de Santo Ovidio. Feliz das vantagens, que lucrára em tal commissão, correu a encontrar-se com Carlos. É ocioso descrever a precipitação com que o enamorado mancebo, espiritualisado por algumas libras, correu á indicada casa. Em honra de Carlos, é necessario dizer que aquellas libras representavam a eloquencia com que elle tentaria mover a velha em seu favor, por isso que, á vista das informações que tivera da pobreza da casa, concluiu que não era alli a residencia de Henriqueta. Acertou. A confidente de Henriqueta fechava a porta da sua baiuca, quando Carlos se aproximou, e muito urbanamente lhe pediu licença para dizer-lhe duas palavras. A velha, que não podia receiar alguma aggressão traiçoeira aos seus virtuosos oitenta annos, franqueou os umbraes da sua possilga, e prestou ao seu hospede a cadeira unica do seu camarim de tecto de vigas, e pavimento de lages. Carlos principiou como devia o seu ataque. Lembrado da chave com que Bernardes manda fechar os sonetos, applicou-a á abertura da prosa, e conheceu de prompto as vantagens de ser classico, quando convém. A velha, quando viu cahir no regaço duas libras, sentiu o que nunca sentira a mais carinhosa das mães, com dous filhinhos no collo. Luziram-lhe os olhos, e dançaram-lhe os nervos em todas as evoluções dos seus vinte e cinco annos. Feito isto, Carlos precisou a sua missão nos seguintes termos: «Esse pequeno donativo, que lhe faço, ha-de ser repetido, se vm.^{ce} me fizer um grande serviço, que póde fazer-me. Vm.^{ce} recebeu, ha pouco, uma carta, e vai entregal-a a uma pessoa, cuja felicidade está nas minhas mãos. Estou certo que vm.^{ce} não ha-de querer occultar-me a morada d'essa senhora, e prival-a de ser feliz. O serviço que tenho a pedir-lhe, e a pagar-lhe bem, é este; póde fazer-m'o? A fragil mulher, que não se sentia bastante heroina para hir de encontro á legenda, que D. João V. fez gravar nos cruzados, deixou-se vencer, com mais algumas reflexões e denunciou o santo asylo das lagrimas de Henriqueta, segunda vez atraiçoada por uma mulher, fragil á tentação do ouro, que lhe roubára um amante, e vem agora devassar-lhe o seu sagrado refugio. Poucas horas depois, Carlos entrava em uma casa da _rua dos Pelames_, subia a um terceiro andar, e batia a uma porta, que lhe não foi aberta. Esperou. Momentos depois, subia um rapaz com uma caixa de chapéo de senhora: bateu; perguntaram de dentro quem era, o rapaz fallou, e a porta foi immediatamente aberta. Henriqueta estava sem dominó na presença de Carlos. Foi sublime esta apparição. A mulher, que Carlos viu, não saberemos nós pintal-a. Era o original d'essas esplendidas illuminuras, que o pincel do seculo XVI fazia saltar da téla, e consagrava a Deus, denominando-as Magdalena, Maria Egypsiaca, e Margarida de Corthona. O homem é fraco, e sente-se mesquinho perante a magestade da belleza! Carlos sentiu-se dobrar nos joelhos; e a primeira palavra, que balbuciou foi «perdão!» Henriqueta não pôde receber com a firmesa, que devia suppor-se-lhe, uma tal surpreza. Sentou-se e limpou o suor que lhe correra de improviso todo o corpo. A coragem de Carlos desmereceu do muito em que elle a tinha. Succumbiu, e nem, ao menos lhe deixou o dom dos lugares communs. Silenciosos, olhavam-se com uma simplicidade infantil, indigna de ambos. Henriqueta revolvia no pensamento a industria com que o seu segredo fôra violado. Carlos invocava ao coração palavras que o salvassem d'aquella crise, que o materialisava por ter tocado o extremo do espiritualismo. Não nos faremos cargo de satisfazer as despoticas exigencias do leitor, que pede contas das interjeições, e das reticencias d'um dialogo. O que podemos garantir-lhe, debaixo da nossa palavra de folhetinista, é que a musa das lamentações desceu á invocação de Carlos, que, por fim, desenvolveu toda a eloquencia da paixão. Henriqueta ouviu-o com a seriedade com que uma rainha absoluta escuta um ministro da fazenda, que lhe conta os chatissismos e massudos negocios das finanças. Sorria-se, ás vezes, e respondia com um resaibo de magoa e de resentimento, que matava, no nascedouro, os transportes do seu infeliz amante. As suas ultimas palavras, essas sim, são dignas de se archivarem para escarmento d'aquelles que se julgam herdeiros dos raios de Jupiter Olympico, quando se empavonam de fulminar as mulheres, que tiveram a desventura de se queimarem, como as mariposas, no lume electrico de seus olhos. Foram estas as suas palavras: «Snr. Carlos! Até hoje os nossos espiritos viveram ligados por umas nupcias, que eu pensei não perturbarem a nossa cara tranquillidade, nem escandalisarem a caprichosa opinião publica. D'hora em diante, um solemne divorcio entre os nossos espiritos. Estou punida de mais. Fui fraca e talvez má, em prender-lhe a sua attenção n'um baile mascarado. Perdoe-me, que sou, por isso, mais desgraçada do que pensa. Seja meu amigo. Não me envenene esta santa obscuridade, este circulo estreito da minha vida, em que a mão de Deus tem derramado algumas flôres. Se não póde avaliar o travo das minhas lagrimas, respeite cavalheiramente uma mulher, que lhe pede com as mãos erguidas o favor, a piedade de a deixar sósinha com o segredo da sua deshonra; que eu prometto nunca mais alargar a minha alma n'estas revelações, que morreriam comigo, se eu podesse suspeitar que attrahia com ellas a minha desgraça...» Henriqueta continuava, quando Carlos, com lagrimas d'uma dôr sincera, lhe pedia ao menos a sua estima, e lhe entregava as suas cartas, debaixo do sagrado juramento de nunca mais a procurar. Henriqueta, enthusiasmada pelo pathetico d'esta nobre rogativa, apertou anciosamente a mão de Carlos, e despediram-se.... ........................................................................... ........................................................................... E nunca mais se viram. Mas o leitor tem direito a saber mais alguma cousa. Carlos, um mez depois, partiu para Lisboa, colheu as necessarias informações, e entrou em casa da mãi de Henriqueta. Uma senhora, vestida de lucto, e encostada a duas creadas, veio encontral-o n'uma sala. --Não tenho a honra de conhecer...--disse a mãi de Henriqueta. --Sou um amigo... --De meu filho?!...--interrompeu ella--Vem-me dar parte do triste acontecimento?... Eu já o sei!... Meu filho é um assassino!... E prerompeu n'um choro, que a não deixava articular palavras. --O filho de v. exc.^a assassino!... interpellou Carlos. --Sim... sim... pois não sabe que elle matou em Londres o seductor da minha desgraçada filha?!... da minha filha... assassinada por elle... --Assassinada, sim, mas só na sua honra--atalhou Carlos. --Pois minha filha vive!... Henriqueta vive!... Oh meu Deus, meu Deus, eu vos agradeço!... A pobre senhora ajoelhou, as creadas ajoelharam com ella, e Carlos sentiu um calefrio nervoso, e uma exaltação religiosa, que quasi o fizeram ajoelhar com aquelle grupo de mulheres, cobertas de lagrimas.... ........................................................................... Dias depois, Henriqueta era procurada no seu terceiro andar, por seu irmão, e choravam ambos abraçados com toda a expansão d'uma dôr represada. Houve ahi um drama de agonias grandiosas, que a linguagem do homem não saberá descrever nunca. Henriqueta abraçou sua mãi, e entrou n'um convento onde pede incessantemente a Deus a salvação de Vasco de Seabra. Carlos é o intimo amigo d'esta familia, e conta este lance da sua vida como um heroismo digno d'outras épocas. Laura, viuva de quatro mezes, contrahe segundas nupcias, e vive feliz com o seu segundo marido, digno d'ella. Acabou o conto. DINHEIRO! DINHEIRO! Contaram-me, ha poucas horas, um episodio da extraordinaria vida d'um homem, que apenas hoje conta vinte e cinco annos. Quem elle é não o direi eu, ainda que me façam... eu sei cá!? bacharel! Eu bem sei que não posso encarecer-me com este segredo, porque ha ahi uma boa duzia de pessoas que o sabem, por triste experiencia, mais miudamente que eu. Mas o que é mais bonito, e não sei mesmo se mais romantico, é que eu conheço pelo menos quatro primas-donas, afóra as comprimarias, d'esta partitura, que negam com toda a energia dos seus brios o importante papel que desempenharam. Deixal-as negar, que eu tambem não digo quem ellas são, ainda que me deem o habito de Christo. Outra cousa: O muito veridico archivista dos factos, que vão lêr-se, pediu-me, por tudo quanto ha sagrado no folhetim, que não divulgasse, nem por sombras, o seu nome. Não o direi nunca, ainda que me façam... barão! E está dito tudo. Agora, gentis leitoras e eruditos leitores, começa o romance, em nome da moralidade, do decoro e dos interesses materiaes... DINHEIRO! DINHEIRO! I. Foi assim que principiou o meu illustre amigo: --Alli onde o vês é um embryão de romances desgrenhados... Referia-se a um rapaz que passava por debaixo das minhas janellas. Era uma boa figura, visto pelas costas; mas de frente não se podia contemplar-lhe o rosto sem recuar... não de medo, mas d'um não sei que desabrido e repulsivo. E não era feio. Eu por mim, custou-me muito a sustentar cara firme quando elle me fitava com aquelles olhos negros e magneticos. Fazia-me medo, palavra d'honra! Depois afiz-me áquella petulancia d'olhar, áquelle carregado provocante da sobrancelha, e, graças a Deus, já me não custa tanto. Ora ahi está, sem grave impertinencia, traçado corporalmente o snr. Alvaro de Sousa, que passava na minha rua. --Com que então (disse eu) é um embryão de romances aquelle senhor?! Bem me parecia a mim que a vida d'aquelle homem não devia ser symetrica, pausada, e prosaicamente chata como a minha! Eu nem se quer lhe sei de nada! Ando cá tão fóra das barreiras da sociedade, e dos dramas contemporaneos... que nem ao menos sei se a mazurka está no quinto grau da refinação, ou se as polkas cederam o terreno á restauração do minuete da côrte... Que miseria! --Não perdes nada, meu caro. Olha que a verdadeira miseria está escondida no manto de lentejoulas com que esta sociedade desdentada e trôpega se encobre. E, se não, deixa-me lêr-te uma pagina da vida de Alvaro de Sousa, e verás como se vive por lá... Como sabes, aquelle rapaz é da plebe, e aspirou sempre a ser da fidalguia. O homem não podia tragar esta desigualdade de gosos imposta pela desigualdade do dinheiro. Sem dinheiro, e sem avós, Alvaro achava-se aos vinte annos n'este mundo sem saber o fim para que viera, nem a fileira social em que devia perfilar-se. --Pois não ha tantos officios?--interrompi eu. --Essa pergunta não me parece tua! Pois tu querias sentar n'uma tripeça um homem de intelligencia? --Que duvida! Os sapateiros de Lisboa não tem um jornal? Alvaro de Sousa seria um habil redactor do _jornal dos sapateiros_. --Estás zombando! --Palavra de honra, que não zombo! Tu sabes lá porque horisontes vai ampliar-se o espirito da arte? Sabes se a tripeça terá uma plastica e uma esthetica! Sabes se a bota de canhão terá um bello ideal? Sabes se a tomba e a intercospia terão uma philosophia? Sabes se as mathematicas virão, com a sua geometria applicada á bota, regular as dimensões do salto? Sabes se a dynamica será a ultima expressão do pino? E não achas aqui n'este complexo de sciencias um succolento pabulo para um sapateiro talentoso, para um sapateiro-Newton, para um sapateiro-Girardin? --Tenho entendido que não queres a historia do homem... Façamos treguas... Eu dou-te o diploma de espirituoso, e tu fechas a torneira ao espirito por algum tempo... Guarda esse cabedal, que desperdiças, para os teus folhetins. Farás rir um fidalgo de raça, embora o seu quinto avô fizesse borzeguins para a tua quinta avó. Farás indignar o sapateiro, teu irmão pelo sangue, pelo osso, e pela carne, e teu irmão pela arte, porque, em fim, eu não sei se a sociedade dispensa mais depressa os teus folhetins que as botas... E eu vi que o meu amigo tinha razão, e dei-lhe plena liberdade de historiar o episodio de Alvaro de Sousa, que continúa assim: --Alvaro, á custa de muitos vexames e affrontas conseguiu relacionar-se em algumas casas, onde compareciam algumas das primeiras mulheres. Eram talvez estas as notabilidades, as sacerdotisas de iniciação para os noviços que entravam no faustuoso templo das vestaes em quinta mão. O rapaz foi mais adiante nas suas ambições. O coração pedia-lhe alimento, o espirito pedia-lhe amor, as aspirações anceavam-lhe um ideal, e o altivo mancebo entendeu que aquellas mulheres deviam comprehendel-o no coração, no espirito, e nas aspirações. Era, realmente, exigir muito, no anno do Senhor de 1849! A primeira declaração, que balbuciou, teve em troca um sorrir de despreso. Aventurou uma segunda centelha da lava, que o escaldava, por dentro, e achou de gêlo todas aquellas mulheres. E não era isto só. Escarneciam-no. Lastimavam-lhe a mania das declarações; e algumas galhofeiras senhoras reuniram-se, uma noite de baile, para lhe dizerem que, todas juntas, hiam devotamente cumprir uma novena a Santo Anastacio para que o servinho de Deus o livrasse d'aquella hydrophobia amorosa. É onde podia levar-se o insulto! Alvaro de Sousa entrou no amago da sua consciencia, como n'um abysmo sem luz, n'um segredo de torturas, e despedaçou um a um os sentimentos generosos com que entrára n'este mundo ingrato. _Pobre!_ esta maldita palavra, estigma de reprovação, era o seu demonio das vigilias e dos sonhos! Como o supersticioso, que recua espavorido á larva imaginaria do seu crime, Alvaro de Sousa fugia dos homens, como se elles, juizes implacaveis, devessem sentencial-o no crime da sua pobresa. Mas um coração altivo de impotente orgulho não podia transigir com estas leis barbaras da sociedade, que amputam no coração do pobre os mais augustos sentimentos da sua vitalidade. Ha uma apparente reconciliação entre a affronta e a pobresa: é a reconciliação do odio: é um pacto de vingança, sellado pelas lagrimas do affrontado; é uma letra de usura avara de desforço, a vencer-se, sem praso fixo, mas a vencer-se um dia. Esta fôra a reconciliação de Alvaro de Sousa com as _generosas_ mulheres da sua affeição. --Ellas, naturalmente, riam-se, se elle lhes désse parte d'essa reconciliação... --Riram muito. Alguem lhes disse: «Aquelle pobre rapaz, que sentia freneticamente as suas paixões, fugiu da sociedade, e devora, na solidão do seu quarto, um rancor profundo...--A mim:--interrompeu uma d'ellas--Que pena! Oh Theresinha, não é uma verdadeira calamidade o odio d'aquelle rapaz?--Ai! Maria da Luz! que triste futuro nos espera...» E chasqueavam assim o seu _ridiculo_ inimigo, perguntando aos amigos d'elle em que dia finalmente as hostilidades se romperiam. Isto ninguem o dizia a Alvaro, porque entre o odio e a vingança impossivel, nas almas fortes, está o suicidio. --_Nas almas fortes!_ (atalhei eu com gravidade philosophica). Então não sei eu o que são «almas fortes!» Cobardes chamo eu aquelles que desesperam. A suprema das miserias humanas é a vingança reservada por causa d'amores despresados. O tal Alvaro de Sousa será muito romanesco, mas tambem é um grande tolo. Com que direito queria elle impôr-se ao amor d'essas mulheres? «Despresaram-no porque era pobre» respondes tu. E se o despresassem porque era feio? Achas que a pobresa tenha muitas seducções? E porque não foi Alvaro de Sousa amar uma peixeira que as ha bem bonitas? Se a sua alma de poeta aspirava a um _ideal olympico e metaphysicamente imponderavel_ porque foi elle procurar o seu ideal nas mulheres carnalmente vestidas de tafetás e veludos? A mulher ordinaria, virgem na alma, sem a depravação das Aspasias que o repudiaram, não lhe seria mais interessante pela candura, pela innocencia, e pelo angelico scismar dos singelos devaneios? Eu não posso soffrer estes Werters caricatos que appellam para o suicidio, quando a mulher dos seus sonhos não póde altear-se ás delicadas concepções da sua alma! Vai a vêr-se a mulher em que elles empregam todo o seu cabedal de sentimentalismo, e depara-se uma estragada de espirito, abastardada nos instinctos, incapaz de conceber a generosidade, gelada para as suaves impressões d'uma amisade honesta, e finalmente uma Ninon sem o _espirito_ da franceza, mas opulenta como ella de _materia_. Repito: porque não vão estes impostores queimar o incenso das suas angelicas adorações aos pés d'uma donzellinha d'olhos timidos, e faces purpurinas? Não é tão bello surprehender o pejo da innocencia!? Não ha tanta poesia n'aquellas lagrimas de um primeiro amor que desconfia da sombra de uma mulher, que passa ao longe do seu Medro! Não ha ahi tantas Angelicas obscuras, tantas Virginias, segregadas dos salões das Phryneas? Emfim, meu sentimental historiador de paixões desgrenhadas, eu não posso sentir comtigo as desventuras do snr. Alvaro. Quero ouvil-as, porque emfim, escrevo folhetins, e minto quasi sempre para encher um espaço de papel. Póde ser que digas alguma cousa que valha a pena de captar a attenção d'este publico portuense, que lê constantemente, e, á falta de romances, por não poder emendar o costume de lêr sempre, começa a mastigar profundas lucubrações sobre a doença das vinhas.--Ora, diz lá. II. O meu amigo continuou: --Alvaro reconcentrou-se em uma tal misanthropia, que nem ao menos os intimos amigos recebia em casa. Dir-se-hia que aquella vida estava a levedar-se do amargo fermento de rancor que as mulheres lhe levaram á alma. Eu vi-o uma vez. Parecia um Smarra, um magico, uma cousa d'um outro mundo, onde os homens conversam com as larvas. Morava no quarto o terror. A sombra da aza da morte empanava aquelle rosto, d'onde a vivesa e o lume fugira, deixando como vestigios, as rugas cadavericas d'uma lenta agonia. --Devia ser um demonio! Cuidei que uns figurões assim eram privilegio dos romances!... E os cabellos? naturalmente arripiados como os do Asaverus, de Orestes, ou de qualquer outro estafermo, não é verdade? --O que tu quizeres... O caso é que eu julguei-o demente, ou, pelo menos, desgraçado, que não sei se é menos, por toda a vida. Agora, levanta-se o pano do segundo acto. Uma bella manhã, sahe um homem d'um navio com quatro bahús atraz de si. Este homem procurou a morada de um seu irmão; este irmão, que tinha morrido, era o pai de Alvaro. O tio de Alvaro, por consequencia, era um rico brasileiro, que acabava de manifestar seiscentos contos. Alvaro recebeu-o com sinistra rudeza. O snr. Manoel da Silva abraçou seu sobrinho, chorando a morte de seu irmão, que era muito semelhante com seu sobrinho. Deu graças á Providencia por encontrar um herdeiro do seu ouro e do seu sangue; e, deixa-me assim dizer sem offensa da metaphysica, insufflou uma alma nova n'aquella casa, uma alma muito grande, maior que a alma universal de Platão! só comparavel á alma que faz girar um sangue azul nas veias d'um merceeiro. Alvaro, quando de improviso se viu rico, partiu a pedra do seu tumulo, e respirou o ar dos vivos. Os olhos faiscaram-lhe um novo lume. Os labios vibraram-lhe uma eloquencia nova. O coração bateu-lhe pulsações d'um orgulho expansivo. O corpo endireitou-se na linha vertical que a Providencia geometrica marcou a todos os que podem parodiar Luiz XIV, e dizer: o dinheiro sou eu! O brasileiro não era abdominoso nem vermelho das bochechas. Era um homem regular, com sentimentos de homem não bestealisado pelo ouro. Achando uma casa pobre, enriqueceu-a, ampliou-a, abriu-lhe os flancos, e deu-lhe as fórmas arrogantes d'um palacete. Um tylburi, uma carruagem, e duas parelhas de eguas hanoverianas harmonisaram o fausto d'aquella magica metamorphose. E tudo era feito a bel-prazer de Alvaro. O tio authorisara-o para tudo, menos para casar-se, porque detestava as mulheres. Elle lá sabia o porque, e, se eu o souber um dia, conta com um folhetim. --Muito obrigado; não me despeço do favor. --Agora vaes tu conhecer a astucia da intelligencia, que não prescinde, na riqueza, da vingança premeditada no infortunio. Alvaro de Sousa não ostentou, como era de esperar, as suas eguas, a sua carruagem, e os seus lacaios de verde e prata. Viveu, dous mezes, ao fogão, conversando com o tio, e conquistou-lhe assim um conceito de grave sisudez, e uma plena confiança. Na primavera, Alvaro appareceu com as flôres, e, agradavel como ellas, grangeou amisades, que não tinha... --Necessariamente... Olha que novidade me dás!... É melhor dizer... _comprou amisades, que não tinha_... --Não posso assim dizer absolutamente. Alvaro, em quanto pobre, era desabridamente orgulhoso, e desconfiado... Um olhar de través irritava-o, e uma palavra equivoca enfurecia-o. Era como os que soffrem rheumatismo agudo, que não consentem uma mosca no travesseiro. E a pobresa, seja dito em proveito da pathologia, é o rheumatismo agudissimo da humanidade... Depois de rico, parece que a sua grandeza estava na consciencia d'ella. O dinheiro tornou-o affavel, carinhoso, sollicito em procurar as relações dos que lhe eram muito inferiores, e até d'aquelles que repellira na infelicidade. É realmente um phenomeno, mas tu sabes que eu não te minto. --E as mulheres que faziam? --As mulheres? Agora vamos nós lá... Isso é uma historia muito complicada... --Quaes são as que figuram? --Vamos por partes. A mulher, que, primeiro, o repelliu foi a Maria da Luz. Esta mulher é casada, e era solteira, mas solteira de trinta e tantos annos, quando Alvaro a requestou. Não sei porque, Maria da Luz, era a preferida no odio, talvez porque sendo a primeira a repellil-o, desairou-o, para todas as outras... Não sei. Alvaro foi com seu tio pagar uma visita ao marido d'esta mulher, porque a influencia do brasileiro em certos homens do poder obrigara aquelle a captar-lhe a benevolencia para conservar certos proventos, que estavam muito em perigo. O sobrinho começou a jogar com a influencia do tio. Quiz lêr-lhe o seu programma de vingança, mas achou que era cedo, ou immoral. Calou-se e esperou. Na visita, que fizeram, Maria da Luz veio á sala, e quiz sustentar a dignidade matrimonial, com os artificios d'uma etiqueta safada. Alvaro ria-se por dentro, mas fingia-se parvo por fóra. Dava-se uns ares de esquecido, e apertava a mão da sua victima com a cordialidade d'um bom homem. E Maria da Luz espantou-se. Passaram-se alguns mezes. Alvaro, que participava da influencia do tio nos destinos da patria, reconcentrou toda a sua energia em realisar desgraçadamente os terrores do marido de Maria da Luz. Quando menos se esperava, este homem é demittido, e obrigado pela fazenda a um saldo de contas que o empobrecia. O brasileiro, que n'este tempo já era visconde de Sousa, quiz salval-o, mas encontrou em seu sobrinho um violento accusador das immoralidades d'aquelle mau funccionario, cuja deshonra reflectia na face de quem o protegesse. As instancias redobradas encontraram frio o visconde, que, por fim, declarou que não intervinha em certos negocios que delegara em seu sobrinho, mais conhecedor das conveniencias do paiz, e da moralidade dos funccionarios. Com este fragmento de _artigo do fundo_, foi despedido o marido da Luz, cujo decahir para o abysmo de miseria era rapido como a facilidade com que subira. Maria da Luz comprehendeu a vingança, e achou-a vil. --Realmente era... --Mas não ha vinganças nobres, creio eu. A mulher, que eu principio a chamar pobre, fechára os seus salões, e não esperou que os alheios se lhe fechassem. A tristeza sentára-se nos sophás d'aquellas salas desertas, onde viria brevemente sentar-se o escrivão da penhora. A desgraça, ainda assim, não lhe aniquilava a soberba. Julgava ella que, humilhando-se a Alvaro, encontraria uma protecção, mas tambem uma ignominia. O marido, que cahira primeiro na sua miseria, perdeu, primeiro, a dignidade. Excitou-a para que escrevesse a Alvaro, e encontrou-a sempre negativa. E Alvaro respirava com sofreguidão um momento que devia chegar. Ao mesmo tempo, desenvolvia-se o plano d'outra vingança. Thereza da Cruz era a segunda victima de Alvaro. Esta não podia ser ferida nos interesses materiaes. Era rica das suas propriedades. Era solteira, e amava profundamente um homem casado. Este homem era delirantemente amado por sua mulher, e presava-a, senão posso dizer que a adorava. Thereza da Cruz fascinava-lhe a cabeça d'aquelle amor-appetite que Stendhal judiciosamente distingue do amor-paixão. Mas Thereza da Cruz detestava a virtuosa esposa do seu amante, com toda a raiva d'um ciume reconcentrado. E Alvaro sabia-o. Era-lhe necessario quebrar aquellas ligações com estrondo e deshonra para Thereza da Cruz. O que elle fez é uma ignominia, é, porém uma vingança que medrara em fel durante tres annos de torturas suffocadas. Alvaro obteve uma carta da mulher do amante de Thereza da Cruz, escripta a uma sua amiga. O dinheiro proporcionou-lhe um falsificador de letra, perfeito na sua perversa habilidade. Mandou-lhe escrever algumas cartas amorosas pelo molde d'aquella letra. E não deixou uma ligeira duvida sobre o genero de relações que a prendiam a um homem, que se não nomeava. Estas cartas enviadas a Thereza da Cruz, foram incluidas n'uma anonyma, que dizia assim: «Minha querida amiga. «Sei que detestas Miquelina, e que procuras perdêl-a no conceito do marido, para conquistares plenamente uma alma digna de ti. Queres castigar o orgulho d'essa hypocrita que lamenta a nossa _prostituição_? Ahi tens essas cartas, que eu pude obter d'um amante, que a despresou por mim. Tira as têas d'aranha dos olhos d'esse piegas, e faz-lhe vêr que sua mulher não é melhor que tu: porque tu és livre, e ella é casada. Saberás o meu nome, no primeiro baile onde nos reunirmos. Tua amiga d'alma.» D. Thereza, recebendo estes cartas, sentiu uma alegria infernal. Daria por ellas a reputação de honrada, se a tivesse. Por fatalidade, o amante, na noite d'aquelle dia tratou-a com indifferença. A orgulhosa, enraivecida d'um tedio que não podia supportar, esforçou-se por chamar a conversação a respeito de mulheres casadas, e avançou a proposição de que não havia uma na primeira roda, que não fosse adultera. O amante protestou colericamente contra o absoluto da proposição. Defendeu sua mulher com ares de Collatino, e exprobrou acremente a maledicencia da insolente. A indignação ferveu: trocaram-se epithetos ultrajantes. D. Thereza foi uma eloquente regateira, e o seu apaixonado repetiu as phrases mais peculiares da tarimba. Por fim, D. Thereza, chegado o momento dramatico, apresentou-lhe as suppostas cartas da esposa. O homem abriu-as com frenesi: reconheceu a letra e sahiu como um vexado pelo demonio. D. Thereza da Cruz, sentiu, pela primeira vez, um momento de completa felicidade em sua vida!... --E depois? III. --Depois, o furioso entrou na camara de sua mulher, e encontro-a velando o somno de um filhinho, que tinha no berço. Perguntou-lhe o marido o que ella fazia a pé á uma hora da noite. Miquelina respondeu que o esperava para lhe servir a cêa, por isso que as creadas, fatigadas de trabalho, não podiam esperar que seu amo se recolhesse, alta noite, para repousarem. O marido recebeu com um sorriso feroz esta resposta digna de uma senhora virtuosa, e sentou-se junto d'ella. Tocado da faisca electrica de tyranno de melodrama, enturvou os olhos, franziu a testa, arrancou a voz dos subterraneos do pulmão, e fallou assim, com uma carta aberta: «Conhece esta letra, senhora?»--É minha, penso eu--respondeu ella com promptidão.--«Já sabe naturalmente que carta é esta.»--Não sei... será escripta á Antoninha? ou á prima Angela? eu não escrevo a mais ninguem.--«A mais ninguem, infame!... a senhora não escreve a mais ninguem?»--Juro que não, juro que não... deixa-me vêr essa carta, Luiz, deixa-me vêl-a, eu t'o peço pela boa sorte da nossa filhinha.--«Veja.» Miquelina leu estas duas linhas da carta: _Dous dias é uma ausencia insupportavel!... Vem, meu anjo, faz que a minha vida tenha algumas flôres_... Não continuou. Prerompeu em palavras inarticuladas. Eram os gritos da desesperação! A surpreza transtornara-lhe o espirito, até converter-lhe o dom da palavra em alarido selvagem. Parecia douda. O proprio marido retirou aterrado diante d'aquella angustia sublime. Houve em casa um motim, um tropel de creados, que se olhavam estupidamente. Miquelina, exhausta de forças, e convencida da realidade daquella infame allusão, desmaiou. Seu marido tateou-lhe o pulso e o coração. Reconheceu que havia alli uma dôr legitima. Ficou estupidamente perplexo, e fazia dó n'esta duvida afflictiva. Mas a innocencia, filha da justiça de Deus, devia triumphar. Miquelina foi logo entregue aos cuidados da medicina. Julgaram-na subindo a gradação d'uma demencia, e Luiz d'Abreu aterrou-se seriamente. Ás dez horas do dia seguinte, Luiz d'Abreu recebia a seguinte carta:--«Deves possuir quatro cartas, que te foram dadas por Thereza da Cruz. São quatro documentos inqualificaveis da infamia d'essa mulher. Tua virtuosa senhora escrevera uma carta a sua prima Angela. Thereza da Cruz pôde obter essa carta, de que se serviu para fazer imitar a letra da que ella chama sua rival. Remetto a carta de que ella se serviu. Tua senhora é innocente como os anjos. Pede-lhe perdão, se lhe já lançaste em rosto a calumnia forjada pela ignobil mulher a que vives associado. Se apesar de tudo, tiveres a impudencia de continuar relações com Thereza da Cruz, hei-de eu, com os teus amigos, apregoar a baixeza do teu caracter para engrandecer a nobreza de tua deploravel esposa. _Um teu amigo_.» Luiz d'Abreu entrou na camara de sua mulher. Estavam com ella dous medicos e duas creadas. Miquelina estremeceu ao vêl-o. Mal sabia ella que esse homem hia ajoelhar-se na sua presença! Eram tocantes as lagrimas que elle chorava, ajoelhado, balbuciando palavras inintelligiveis. Miquelina ergueu a face para testemunhar aquella nova surpreza. Os circumstantes quinhoavam do enthusiasmo d'aquella scena, sem a comprehenderem. «Peço perdão a minha virtuosa mulher! (exclamou elle) perdão d'uma affronta, d'uma calumnia, que a reduziu a esta situação... Na presença de todo o mundo eu quizera que ella me perdoasse...»--Sim, sim,--bradou ella com enthusiasmo febril--eu perdôo-te de toda a minha alma, Luiz, de todo o meu coração, meu esposo querido!... Luiz d'Abreu ergueu-se, chorou sobre a mão que beijava, e foi feliz, verdadeiramente feliz, n'aquella hora solemne da sua vida. Foram muito sensiveis os progressos nas melhoras de Miquelina. Na tarde d'esse dia, Abreu, com o mais carinhoso bilhete, pediu uma entrevista, á meia noite, a Thereza da Cruz. Foi-lhe concedida. Ao dar da meia noite estava Luiz d'Abreu encostado á porta que devia ser-lhe aberta por Thereza da Cruz. Abriu-se a porta. Abreu tomou aquella mulher pelos cabellos, arrastou-a para o meio da rua, e, sem dizer-lhe um monosyllabo, encheu-lhe o corpo dos vergões d'um chicote. Thereza supportara as primeiras chicotadas com o silencio da vergonha; mas quando a dôr physica dominou a moral, gritou. Abreu retirou a passo rapido. Thereza fugia, quando um segundo homem lhe lançou a mão. Ella reconheceu-o, e pediu que a deixasse. «Não, minha senhora,--replicou o seu conhecido--eu não posso consentir que v. exc.^a seja assim desfeiteada na rua como uma mulher de alcouce...»--Deixe-me, deixe-me... por piedade, snr. Alvaro de Sousa! E debatia-se entre as mãos de Alvaro como atacada de gota coral. Aproximou-se a patrulha. Lançou mão de ambos, e perguntou a D. Thereza se aquelle homem a insultara. D. Thereza respondeu que não, que ninguem a insultara. Alvaro, que nem zombando mentia, desmentiu a sua velha _amiga_, dizendo que elle a vira chicoteada cruelmente por um homem, que fugira; e que o mais que a tal respeito podia dizer era que esta senhora morava n'aquella casa, era uma respeitavel fidalga, e chamava-se D. Thereza da Cruz. A patrulha não prescindiu d'estas informações ratificadas por s. exc.^a Perguntou-lhe o nome do aggressor, e ella respondeu que o não dizia. Imagina, meu amigo folhetinista, a colica despedaçadora em que a pobre mulher se viu! A patrulha não queria largal-a; mas Alvaro de Sousa capitulou por uma libra com as imperiosas exigencias da guarda municipal, e conseguiu a liberdade da pobre mulher. E, ao despedir-se de D. Thereza, fel-a parar um momento, para dizer-lhe com a mais fleumatica placidez: «Minha querida senhora! Eu comprei com uma libra a satisfação de pagar a v. exc.^a a menor parte d'um grande serviço que lhe devo... Eu não pude esquecer-me nunca de que v. exc.^a com algumas amigas suas, cumpriram uma novena a Santo Anastacio, para que o servinho de Deus alcançasse curar-me da hydrophobia do amor, que me atacou... Tenha v. exc.^a uma noite feliz.» E retirou-se. Thereza da Cruz não respondeu uma palavra. Alvaro de Sousa estava vingado. --Tens mentido com a mais soberana presença de espirito!--atalhei eu. --Não minto, juro-te que não minto... Estás muito em occasião de verificar estes factos... Deseja conseguir a verdade, que has-de conseguil-a.[3] E eu acreditei-o; e ámanhã acreditarei tambem que qualquer destemido despejou um bacamarte nos intestinos do seu anjo... --O rigor da chronologia--proseguiu o implacavel noticiador--exige que eu te conte agora a vingança de Maria da Luz. A hora da miseria extrema tinha soado. Os bens de raiz confiscou-os a fazenda: os moveis estava designado o dia de leilão em que deviam ser vendidos. O marido de Maria da Luz, que por nome não perca, soubera que sua mulher ridiculisara as pretenções de Alvaro de Sousa n'aquelles dias de vergonhosa pobreza. Bem conhecia elle a indignidade a que tentava forçar sua mulher, instigando-a a que se valesse do prestimo d'um homem que tinha fortes razões de aborrecel-a. Todavia, Alvaro gosava de um tal conceito de nobreza de coração, e sensibilidade d'alma que qualquer marido, mais escrupuloso ainda, não duvidaria instar, na hora critica d'uma penhora, pela humildade da sua supposta Lucrecia. Maria da Luz, por fim, conveio na pessima situação em que se achavam os negocios de seu marido. A fome avisinhava-se, e a deshonra é menos negra que a fome, segundo a opinião d'alguns moralistas entendidos n'estas côres. Alvaro de Sousa recebeu uma carta de Maria da Luz, em que lhe era pedido o emprestimo de doze mil cruzados, pagaveis em doze annos. O cavalheiro respondeu que a obrigação onde eram estipulados doze annos seria reformada pelo praso de duas horas...... Maria da Luz comprehendeu-o. O primeiro abalo, que sentiu no coração, foi a raiva: o segundo foi a vergonha: o terceiro foi a negociação com as condições do titulo reformado, conforme a vontade do credor. E respondeu affirmativamente, com a sagrada condição d'um segredo inviolavel para seu marido. E Alvaro de Sousa enviou doze mil cruzados ao marido de Maria da Luz, com esta carta: «Meu caro senhor. «Conforme á negociação que acabo de fazer com sua senhora, remetto doze mil cruzados. Da inclusa carta da exc.^{ma} snr.^a D. Maria da Luz, verá v. s.^a que este contracto é bilateral, e a parte que eu tenho n'elle em vantagem minha é a renuncia que a dita senhora me faz d'uma propriedade que eu não sei se está hypothecada a v. s.^a Supposto me devessem ter sido dados estes esclarecimentos antes da remessa do dinheiro, eu não tenho duvida em sujeitar-me a qualquer outra transacção que possamos ambos amigavelmente fazer, visto que, d'hora em diante, nos devemos ambos considerar com mais ou menos jus á mesma propriedade. E, como eu tenha resolvido cedêl-a em beneficio de meu lacaio, v. s.^a não terá duvida em consideral-o com os direitos que eu possuia. De v. s.^a attento venerador _Alvaro de Sousa_.» --E depois?--interrompi com anciedade. --Depois...... tu vaes dizer que eu te minto!... --Não digo... palavra d'honra! --Depois, o codilhado foi Alvaro de Sousa, porque o marido da Maria da Luz empregou convenientemente os doze mil cruzados e vive perfeitamente com sua mulher. --Mas Alvaro de Sousa? nunca mais se importou com ella? --Nunca mais. A consciencia diz-lhe que está vingado. --E das outras? --Das outras... vingou-se sem ruido... Tomou d'ellas uma vingança que não póde ser romantisada por ser muito simples. O meu amigo viu passar uma mulher, e foi atraz d'ella. Eu escrevi tudo isto com as reminiscencias vivissimas do dialogo. Querem saber onde tudo isto aconteceu? Agora é que v. exc.^{as} vão ficar surprehendidas... Foi em Pekim! Salvei a moral publica! Cante-se o hymno! A CAVEIRA. PROLOGO. Quem disser que em Traz-os-Montes não ha romances, é capaz de dizer que a lua não tem habitantes, e as alfandegas ratos. A provincia de Traz-os-Montes é um sertão desconhecido, um retalho de Portugal segregado da civilisação; mas não deixa por isso de ter uma chronica de tradições barbaras, que virá archivar-se em folhetins, quando os caminhos de ferro, construidos pelos capitalistas da Ovelhinha, aproximarem o contacto das intelligencias com as florestas virgens d'aquella região polar. Esse dia amanhecerá bem cedo. A aurora da civilisação madrugou para todos. A viabilidade discute-se á lareira. Mais d'um juiz das almas se extasia nas vastas theorias do caminho de ferro. O regedor de parochia rural, auxiliado pelo cura, apostolisam no adro, aos domingos, a theoria do augmento do salario pela facilidade dos transportes. Ha lavradores que addicionaram á leitura do Borda d'Agua as prelecções escriptas de economia politica do snr. dr. Carneiro. Alguns esperam concorrer ao mercado de Sevilha com cereaes e repolhos nas proximas colheitas. O enthusiasmo é universal. A expansão fervente dos interesses materiaes, a febre eloquente da viabilidade, os traços profundos e rasgados, com que as intelligencias financeiras fixam cathegoricamente o dia supremo da nossa prosperidade, não são já um exclusivo da mocidade jornalistica. O meu collega Ricardo Guimarães, que salta de noite em cuecas, fóra da cama, sonhando-se impellido por um wagon, doudeja de jubilo ao vêr-se comprehendido, no seu ardente apostolado, desde Monção até ao Cabo da Roca. Lateja-lhe o enthusiasmo nas bossas frontaes, cada vez que o alvião do operario rasga no seio da terra o tumulo do carroção ignobil! (Isto era escripto em 1853...) A mocidade é assim. A força creadora do talento ha-de supprir a debilidade do thesouro. Onde os capitalistas não chegaram, hirá o artigo de fundo, palpitante de vida, como um ouragan invencivel, desaterrar a aterrar com as forças magneticas do genio, com a magia imperiosa dos periodos arredondados artisticamente. E, por tanto, a provincia de Traz-os-Montes vai ser aquecida pelas irradiações do foco civilisador. Um dia, os povos do Marão, agrupados nas cristas das serranias, verão lá em baixo passar o traço negro do carril; e cuidarão que um demonio, na cauda d'um raio, lhe talou as campinas, no dia tremendo das vinganças do Senhor! Mais tarde, os pavidos moradores da Campeam, illustrados pela leitura repentina, e pelos artigos de fundo, virão, de sócos e coroça, nas azas do carril, applaudir os cavallinhos, saborear um ponche no Guichard, e influir seriamente no futuro da empreza lyrica. Então, sim! Mondroens, Villarinho de Cotas, e Canellas terão uma associação industrial, uma caixa filial, um gabinete de leitura, e um centro promotor das classes laboriosas. O cavador, na hora da sesta lerá, na vinha, de barriga ao ar, o _Tymes_, e Benjamin Constant. O proprietario, entregue ás subtilezas economicas, que distinguem o cabedal da renda, andará em guerra littetaria com o seu visinho da aldeia proxima, por causa d'uma falsa interpretação aos sophismas de Bastiat. N'esse dia, serão banidos os estupidos da face da terra. O proletariado, filho da estupidez, não virá coberto de farrapos pedir um bocado de pão, no banquete social, por conta do futuro fomento. Pouco ha-de viver quem não vir tudo isto. Será então chegado o momento solemne de pedir á provincia do norte a historia do seu passado. Serão exploradas então as minas de poesia, entulhadas pelo obscurantismo de longos seculos. Acontecerá muitas vezes encontrar-se um sóco onde se esperava um borzeguim de castellan. O leitor pedirá uma heroica lucta de dous infanções armados da fidalga espada, e verá duas fouces roçadouras decidirem um pleito de apaixonado melindre. Mas não será em tudo assim a chronica obscura da provincia, onde vivi alguns annos, e em poucos dias colhi apontamentos para longos trabalhos de muito proveito esthetico, plastico, artistico, e não sei mesmo se cubico, anomalo, e hybrido. A historia, que vou contar, com innocentissima lealdade, póde ser confirmada ainda por duas ou tres testemunhas, que, pelo menos, viviam, ha cinco annos. Fallo assim com orgulhosa authoridade, porque tenho direito a ser acreditado em romances, que tem a honra de assentarem n'uma sincera base. A mentira no romance é uma nodoa, que nausêa o publico illustrado. Alexandre Dumas, escrevendo um romance intitulado _Martim de Freitas_, obrigou este heroe a desembarcar em Mafra, nomeou-o alcaide do castello da Horta, e fez nascer D. Sancho II na Palestina, onde foi baptisado por um tal monsieur d'Evora, arcebispo de Leiria! É uma cornucopia de asneiras este litterato, fallando de Portugal. O publico tem direitos sagrados, e é realmente ultrajar-lh'os, querel-o capacitar de que Mafra é um porto de mar, e Leiria uma cidade archiepiscopal, e monsieur d'Evora cidadão portuguez. Comprehenda-se a missão do romancista. O romance, a viabilidade, e o fluido transmutativo são a tripeça em que está sentada a civilisação. Quebrar-lhe um dos pés é dar com ella em terra. A CAVEIRA. I. Morreu, ha seis annos, em Villa Real, um velho de oitenta e oito annos. Chamava-se D. João de Noronha, e habitava uma casa pequena, mas decorada de grande brazão d'armas, e não sei quantas ameias modeladas pelos pilares das açoteas mouriscas. O leitor, que, por louvavel curiosidade, quizer, de perto, capacitar-se da fidelidade architectonica d'esta casa, vá a Villa Real, e na _rua do Cabo da Villa_, pergunte pela casa de D. João de Noronha. Não terá de que maravilhar-se, a não ser da sisuda gravidade, e rigorosa certeza com que o author lhe conta historias interessantissimas. Algumas palavras a respeito d'este D. João de Noronha. O _dom_ é quasi sempre, entre portuguezes, indicação de fidalguia remota; mas em D. João de Noronha era uma irrisão para o povo, e uma ignominia affrontosa aos fidalgos da terra. E a razão é esta: Ha cento e vinte annos que viveu em Villa Real uma senhora D. Paula Coronel e Noronha, protectora d'um tal Antonio da Silva, sapateiro da casa. Este homem era desordeiro e valentão. Em rixas com um freguez por causa d'umas tombas, matou-o desastradamente. A justiça apanhou-o, e condemnou-o a pena ultima. D. Paula exhaurira os grandes recursos da sua influencia, sem conseguir salvar da forca o seu afilhado. Avaliem-se, porém, os extremos de D. Paula pelo condemnado, e attenda-se á época em que os grandiosos esforços d'uma fidalga são anciosamente empenhados na salvação d'um arrastado verme da plebe. D. Paula, em ultimo recurso, declara que o sapateiro é filho bastardo de seu irmão, e como tal o perfilha. Desde que esta adopção foi consignada no livro dos alvarás de perfilhamentos, Antonio Coronel de Noronha está salvo da forca. O processo atravessa novos tramites; e a lei, esmagada sob o rebolo transformado em pedra d'armas condemna o réo a cinco annos de degredo para Castro-Marim. O nobre exilado, um anno depois, morreu de uma indigestão de figos do Algarve; e, honra lhe seja feita, á hora da morte, declarou que vivera sapateiro e christão, e como sapateiro pedia perdão aos homens, e como christão a Deus porque muito queria salvar-se. Seu irmão Francisco, mestre ferreiro, morreu ferreiro, porque não quiz partilhar das honras heraldicas de seu irmão, que, pelos modos, não eram muito lisongeiras para a memoria de sua mãi. Este ferreiro deixou um filho, chamado João, e uma fortuna avultada, adquirida na bigorna. João, orphão aos quinze annos, quiz ordenar-se; mas o amor tolheu-lhe as vocações ardentes do sacerdocio. Por aquelles tempos a sociedade estava retalhada em classes. João da Silva invejava o acaso d'um nascimento, e desesperava-se na impotencia de associar-se dous appellidos euphonicos, que o guindassem á região dos homens superiores em raça aos outros homens, como o onagro de Sevilha superior em raça ao onagro de Cacilhas. Zombavam cruelmente d'elle, quando lhe disseram que se encabeçasse na linhagem, embora bastarda, de seu tio, que morrera legalmente inscripto no livro dos costados a folhas 1473. João da Silva foi conscienciosamente fidalgo desde esse instante. Tirou uma certidão, hypothecou metade da sua fortuna ao fôro, e consegui-o. Não diremos ao certo quem foi o concussionario d'aquelles tempos, que lhe recebeu os dous mil cruzados do pergaminho. As urgencias do estado de hoje eram litteralmente as urgencias do estomago dos chancelleres móres do reino. A fidalguia protestou silenciosa contra tão grave injuria. Fechou os seus salões ao adepto insolente, que ousára assignar-se D. João de Noronha, e mandára insculpir na fachada d'uma casa ameiada as armas dos Noronhas, É tradição em Villa Real que os Pintos Coelhos, representados hoje por José Antonio Teixeira Coelho de Mello Pinto da Mesquita, mandaram borrifar de sangue as armas de D. João de Noronha. Nada fez recuar o proposito do filho do ferreiro. Os tempos correram, mas os odios ao pobre homem não se extinguiram. Digno d'estes tempos, D. João, seria hoje affavelmente recebido pela velha nobreza, com tanto que as differenças no azul do sangue fossem saldadas com o amarello do ouro. Conheci este homem, e tractei-o muito de perto. Era eu bem creança, e respeitava as loucuras d'aquelle velho, com a mais sisuda tolerancia. Quando o vi, aos oitenta e seis annos, casar-se com uma donzella (oitava maravilha!) de oitenta e nove, cingi-me com aquelle par conjugal, e quiz ouvir-lhe os colloquios amorosos, as expansões delirantes, as ternuras idealissimas. Não pude; e o leitor perdeu muito com isso, que eu não era homem de privar d'um capitulo precioso a _Physiologia do Casamento_ de Balzac. O vento das tempestades da vida impelliu-me de Villa Real para outra linha no mappa-mundi das minhas observações; e o meu caro D. João morreu poucos dias depois de sua mulher, e é de crêr que, abraçados em frenetica paixão, renascessem, viçosos e frescos como Paulo e Virginia, em mundos novos, e novas constellações. Assim seja! Como vinha dizendo, leitor attencioso, quando eu tive a honra de ser admittido ao tracto intimo de D. João de Noronha, reparei n'uma caveira, contida em uma redoma de vidro, com pedestal de pau preto, enviezado de arabescos de marfim. Esta redoma pousava em uma mesa torneada em bilros de custoso lavor. Reparei, outrosim, que em certo dia do anno um véo funebre cobria aquella redoma. Este dia era quinta feira santa. Não concebi que relação podesse existir entre aquella caveira e a paixão de Jesus Christo não ousava, porém, interrogar-lhe o profundo mysterio. Entrava eu uma vez, sem fazer-me annunciar, na sala da redoma, e encontrei D. João ajoelhado com austero fervor na presença da caveira. Voltou-se de repente sentindo-me os passos, e eu não pude recuar sem ser conhecido. Vi-lhe lagrimas; eram magestosas, e eu juro que muitos dos meus leitores de coração petrificado chorariam, se vissem a sincera angustia d'aquelle rosto venerando. --Venha cá--me disse elle--que eu não tenho vergonha de chorar; Choram-se na decrepitude os risos da mocidade. Entra-se no tumulo a chorar como se entra na vida. Vi-me embaraçado em responder-lhe. Eu não tinha aprendido estas palavras artificiosas, com que fingimos um quinhão de sentimento impostor. Então senti e chorei. Hoje... eu sei cá! faria uma nenia em prosa de muita melodia, e citara-lhe não sei quantos velhos, que a historia diz que choraram desde Belisario até ao abbade de Chateneuf. --Sente-se aqui ao pé d'esta reliquia--proseguiu o consternado ancião.--Devo-lhe um lavor muito delicado: nunca o senhor me perguntou o segredo d'este craneo. Eu gosto de quem respeita a dôr alheia. Quero pagar-lhe essa fineza invocando do tumulo do meu coração o mysterio, que aqui está sepultado ha sessenta annos. Se eu me calar, no correr da minha historia, respeite o meu silencio... É que não poderei... Talvez possa... O coração... dizem que manda aos labios muito do seu fel, quando os labios lhe pedem as amarguradas reminiscencias d'uma grande desgraça... Será assim? Eu não sei... vel-o-hemos. Ora attenda-me, meu amigo. A innocencia deve alegrar-se com a historia, onde figura um anjo. Hei-de fallar-lhe de Lucifer tambem... Seja o anjo para o recreio; e o Lucifer para a experiencia... Um velho é um livro. Eu vou abrir-me... quero dar-lhe a leitura de minha alma, hoje, que, ámanhã, talvez a pedra rasa d'uma sepultura nem ao menos lhe diga que eu durmo alli o suspirado somno do infeliz... II. D. João de Noronha, sentado de modo que encostava o cotovello á mesa da redoma, principiou a historia do seu segredo, em tom de profunda commoção: «Tinha eu vinte annos... ha que tempo isto vai!... ha sessenta e oito annos que eu estudava latim no convento de S. Francisco. Era minha tenção ordenar-me. Meu pai grangeara-me uma fortuna, que me estimulou ambições de subir na posição social. Quiz ser padre, e era-o, se nascesse na igreja lutherana, onde o padre não soffre a cruelissima amputação da vida da alma, em commercio com o mundo. Quando encontrei uma mulher, que me imprimiu nos sonhos a sua imagem, perdi o imperio da vontade, e as fervorosas vocações do sacerdocio. Adorei uma d'essas bellas mulheres, que trazem comsigo uma sina de desgraças, um contagio de desastres, e a perpetuidade d'uma chaga, aberta no coração com um ferro em brasa. Esta mulher, por quem me fizera nobre, por quem me sentira ambicioso d'um fausto, que a sociedade me ultrajou com justos motivos, por quem, finalmente, me fizera estupido... atraiçoou-me. No meu tempo o amor era uma corôa de espinhos. Então apaixonava-se um homem, e sentia-se perdido para a sua liberdade, e escravo de uma angustia interminavel. Eu, por mim, senti-me ultrajado por uma traição incrivel, e não pude, ainda assim, estalar as algemas ignobeis que me prendiam á deshonra d'um abandono injustificavel. Ajoelhei aos pés de Martha. Pedi-lhe a pouca ventura que me roubára cruelmente... pedi-lhe a dignidade do homem que por ella se despresára... encontrei-a morta para mim, e vencida por uma paixão, que devia matal-a! Tive então dó d'aquella flôr, que se desfolhava na madrugada da sua primavera? O meu amor era grande e generoso! Pedi-lhe que fosse minha irmã, minha amiga... Nem isso!... nem se quer me aceitou um conselho de pai na hora em que mais precisa lhe fosse uma protecção que a salvasse da deshonra, a que se tinha cegamente abandonado. Eu valia menos que Pedro de Mesquita. Este homem era official de cavallaria. Nascêra illustre; conquistara-se uma opinião de heroe; batera-se ardidamente como um leão nas ultimas batalhas. Era aqui apontado em Villa Real; como o primeiro homem nos triumphos difficeis do amor. E não o lisongeavam! O homem, que obrigára Martha a despresar-me, devia ser tudo isso. Era muito linda esta mulher! Diziam-no as emulações, os odios, e as intrigas, que a sua formosura causára entre pretendentes, que não queriam ceder a prioridade do merito a nenhum. Um dos mais poderosos era Heitor Corrêa, cadete de cavallaria e filho segundo de uma nobre casa d'esta villa, que não tenho necessidade de mencionar-lhe. Não obstante Heitor Corrêa era repellido, porque Pedro de Mesquita não tinha concessões a esperar para ser mais amado que outro qualquer. Martha arrancára, como Luzia, os bellos olhos, se assim podesse afastar de si os perseguidores que a tornavam suspeita ao homem que tão caro devia ser-lhe. E era. Estes dous homens odiavam-se rancorosamente, e procuravam á porfia um ensejo em que podessem travar as espadas. Corrêa confiava demasiado em si. Mesquita sobejava-lhe a certeza de superar o debil adversario. O momento ambicionado chegou. Era quinta feira santa. Martha assistia ao officio da paixão na igreja de S. Francisco. Heitor Corrêa antecipára-se a occupar o mais proximo, lugar de Martha. Pedro de Mesquita viera depois, e mordera colericamente o beiço inferior. Martha tremeu e chorou. Quiz sahir; não a deixaram as multidões espessas. Heitor Corrêa comprehendeu-a, e indignou-se. Era muito despreso para a altivez do seu caracter. Terminára o officio. O povo evacuou o templo. Martha sumiu-se nas turbas. Dous homens apenas, como duas estatuas, se fixavam sós, e immoveis, na nave da igreja. Sahiram, simultaneamente. Encontraram-se no adro. Trocaram poucas e rapidas palavras, e desembainharam os fains. Pedro de Mesquita ostentava no rosto a superioridade de mestre. Heitor chammejava a colera, a vingança, o capricho, e por ventura o desejo de matar, ou morrer. Esta scena passava-se na presença de mil pessoas. As beatas benziam-se horrorisadas; e os mancebos estorciam-se no frenesi de espedaçarem o forasteiro Mesquita, cuja superioridade sobre o seu patricio era indubitavel, e perigosa. Perigosa, não; porque o valente era generoso. Heitor não tinha já um botão na farda, quando Pedro de Mesquita, despresando demasiadamente a defesa, se sentiu ferido ligeiramente no braço esquerdo. A scena tornou-se cruel! O orgulhoso não podia conciliar com aquelle sangue a sua generosidade. Heitor foi mortalmente ferido, e cahiu banhado em sangue. Alguem correu sobre Mesquita, gritando contra o assassino. Mesquita esperou com bravura! Não houve mão que lhe tocasse. III. Heitor Corrêa, reanimado pelos alentos da desesperação, ergueu-se, e esgrimiu ainda o florete com braço impotente. Mesquita, ferido n'um braço, afastou-lhe os botes, com admiravel presença de espirito. O duello em Villa Real era uma cousa nova. O facto, em um dia tal, redobrava de escandalo. Não se atravessavam as multidões espessas, que reprovavam ruidosamente um tamanho desacato. A causa do seu espanto não era a moral ultrajada, nem a perda voluntaria da vida. Dava-se como razão suprema de tal algazarra estar exposto o Santissimo Sacramento, quando dous homens se cortavam a ferro frio. As authoridades, conscias do acontecimento, deram ordens immediatas de captura. Estas ordens não podiam ser cumpridas por meirinhos; e não houve desgraçadamente authoridade militar que capturasse os duelistas. Heitor Corrêa, exhausto de forças, perdidas no sangue, que os recursos da cirurgia não estancára, desmaiou, e deu symptomas de morto. O alferes de cavallaria, ligeiramente ferido no braço, curava-se n'uma botica, affectando um ar de placidez que indignava as turbas, tumultuosas na rua. D'entre ellas sahiam gritos terriveis de «morra!» Os que assim gritavam diziam que estava exposto o Santissimo Sacramento; e, por tanto, não podiam deixar de matar o impio que desacatára, em quinta feira santa, a solemnidade da paixão de Christo. Como elles saciavam a sede de sangue com o fervor beatifico das suas crenças, explicam-no milhares de factos semelhantes que acompanham sempre a edificante historia dos muito austeros authores da integridade religiosa, tanto em Roma, como em Constantinopla. Fernando Corrêa, irmão de Heitor, estava á janella quando viu entrar seu irmão nos braços de dous soldados. Desceu ao atrio, e interrogou o facto. Contaram-lhe, com as mais irritantes circumstancias, o acontecimento. Fernando, sem attender a supplicas da familia, e de amigos prudentes, sahiu de casa, tal qual estava, embrulhado n'um capote. Mas, debaixo d'este capote, levava um bacamarte. Quando chegou á entrada da _rua do Jogo da Bolla_, viu um grupo de povo, que parecia vedar a sahida d'uma botica. Lá dentro estava Pedro de Mesquita, a quem faltára a coragem para affrontar a força bruta da populaça. Em frente d'essa botica morava a infeliz Martha, a attribulada amante d'aquelle homem, que alli estava ameaçado das iras da plebe, tigre desenfreado da licença, n'aquelles dias de escravidão, logo que um acaso lhe alargasse um pouco as algemas. Fernando Corrêa abriu uma clareira entre a multidão. Descobriram-se todos, exclamando: «Chega o fidalgo! deixem passar o fidalgo.» E o fidalgo entrou, perguntando quem era o assassino de seu irmão. --Assassino... não!...--respondeu o alferes.--Fui eu quem o feri, e honro-me de ser ferido pelo cavalheiro com quem me bati. Fernando Corrêa, estupido como fatalmente são os que podem contar muitos avós robustos de musculos, e nenhum de vigor intellectual, não comprehendeu a delicadesa d'aquella resposta. O que elle praticou é um acto de barbaridade, que envergonha a especie humana. Recuou um passo atraz, aperrou o bacamarte, e despejou-lh'o, á queima roupa, no peito. Foi horrivel, senhor! Foi esse um lance, que eu tenho aqui diante de meus olhos, noite e dia, porque n'esse instante ouvi um grito de arripiar as carnes. Era Martha que cahira, com a face na lage da janella, fulminada pela angustia mais atroz, e mais inconcebivel dos tormentos possiveis n'esta vida. Voltaram-se todos para aquella janella, e viram-me... a mim, que subira, alentado pela coragem da minha dôr, as escadas d'aquella casa, e levantára da janella a pobre menina que julguei morta. Olhei em redor de mim... não vi ninguem, excepto uma creada que chorava, perplexa, sem atinar com o que devia fazer. A familia, a essa hora, na igreja da _Misericordia_, orava, talvez, á Virgem protectora das virgens... Fernando, consummado o assassinio, sahiu galhardamente por entre as turbas que saudavam o nobre algoz. A paralysia do terror gelára os poucos que lhe reprovavam a infamia. Ninguem ousou, sequer, lembrar-lhe que aquelle sangue lhe tingia os pergaminhos! O nobre amante de Martha foi conduzido ao quartel. O seu ultimo lance d'olhos n'esta vida, viram-no todos fixar-se na janella da infeliz. Depois... fechou-os, e fechou-os para sempre. Passada uma hora, Fernando Corrêa, montado n'uma possante mula, e seguido d'um creado, e dous bacamartes, passava em _Almodena_, caminho de Lisboa. E, para que esta circumstancia me não esqueça, dir-lhe-hei que, um mez depois, o assassino, impune pelo privilegio dos seus pergaminhos, entrava em Villa Real, com um alvará de real mercê que o isentava de responder pela morte de Pedro de Mesquita. O povo, desde esse dia, vergava respeitosamente a cabeça ao fidalgo, que passava soberbo por entre aquelles que lhe liam na face a altivez do assassino, que zombára da lei. Heitor Corrêa... esse foi enterrado no mesmo dia em que os sinos dobraram por alma de Pedro de Mesquita. IV. É necessario fallarmos de Martha... É a luz unica d'este quadro negro... Nem a historia valia a pena de ser ouvida, se não tivesse um heroismo de virtude para a admiração, e uma santa para o culto das almas nobres, e apaixonadas pelo sublime do martyrio. Por ventura, póde o senhor comprehender a situação d'um homem, que tem desmaiada nos braços aquella por quem fôra atraiçoado...? Não é bastante comprehender isto: é necessario compenetrar-se mais da minha situação... Martha illudira-me... ou illudira-se; Martha despresara-me com cynismo indigno da sua idade; Martha escarnecera as loucuras que me sacrificaram a ella; Martha desmaiara, adivinhando a morte do meu rival... Comprehende por ventura agora o tormento indefinivel da minha situação?... Não comprehende, porque se eu lhe disser que n'aquelle trance original o meu sentimento era a piedade... se eu lhe disser que dera a minha vida pela do rival assassinado, com tanto que Martha não fosse assim desgraçada... o senhor, por certo, não concebe este phenomeno, este sacrificio... esta monstruosidade de resignação... Quem sabe!... a sociedade capitular-me-hia de imbecil, e o meu amigo, por muito favor, concedera-me a celebridade dos tolos inoffensivos, não é assim?» Não lhe respondi; mas aqui me puno, confessando que D. João me adivinhára. Córei, de certo, quando fui surprehendido no segredo dos meus juizos. Nada menos lisongeiro que o meu silencio para o pobre velho! Era de certo um pungente assentimento á sua conjectura! A dôr é generosa, e cala as affrontas. Reconheço hoje que ultrajei aquelle grande sacrificio, que comprehendo agora. Se não receasse mesclar com a gravidade melancolica d'esta narrativa um anexim popular e graciosamente philosophico, diria que o diabo não quiz nada com rapazes, e D. João de Noronha, de certo, não era mais privilegiado que Lucifer para tirar de mim melhor partido. D. João proseguiu: «A familia de Martha veio encontrar-me, com ella nos braços. A mãi, que prophetisára, em seus virtuosos presentimentos, a desgraça da filha, apertou-a contra o seio, cobriu-a de lagrimas, e acordou-a d'aquelle lethargo, com afflictivos gemidos. Martha abriu os olhos; mas nunca mais descerrou os labios. Esperavamos anciosos que a sua angustia respirasse pelas lagrimas. Não chorou uma só. Em quanto os sinos dobravam a finados pela alma dos dous amantes, Martha estremecia, mas não posso dizer-lhe como era aquelle tremor... A corda d'um instrumento ferida, e deixada ao impulso da vibração estremece assim. No fim de tres dias extinguiu-se o soffrimento, por que a vimos pender serenamente a cabeça nos braços de sua mãi. Felicitamos-nos pelo repouso da infeliz. Imaginamos que ella devia acordar mais tranquilla, ou, pelo menos, mais desabafada d'aquella agonia que lhe suffocava não só os gemidos, mas até a respiração. Esperamos... mas quem não esperava era o medico, que, ao retirar-se, deixou dito que não era Christo para restituir a filha á viuva de Nahim. Estava morta, por tanto... e morta sem balbuciar uma palavra! Como se morre assim? Dizem que a morte é a aniquilação da materia... mas aquelle anjo morreu dentro em si, antes que os symptomas da destruição nos revelassem o rapido dilacerar d'aquella morte! Quem dirá que aquella mulher soffreu no corpo? Ninguem! A alma, só a alma, este ser immortal que foge do mundo, onde a vida do amor lhe falta; a alma, reconcentrada no seu mysterio de dôres inconcebiveis, reluctando por estalar as algemas que a prendem ao cavallete do corpo... a alma, e só a alma, meu amigo, consummou aquelle trance de incomportavel inferno, e passou ao mundo da penitencia ou da gloria... Agora principia a minha scena n'esta tragedia... É só minha, e só eu a comprehendo... mas hei-de contar-lh'a. Acompanhei á igreja de S. Francisco o cadaver de Martha. Fui o ultimo que se retirou de ao pé da sepultura; e fui o primeiro que todos os dias, em tres annos successivos, lhe ajoelhou na pedra que eu não queria fosse a nossa eterna separação. Empreguei os meios para obrigar o coveiro a não tocar n'aquella sepultura durante tres annos. Findo este praso, venci com dinheiro a repugnancia do coveiro, e a pedra que cobria os ossos de Martha foi levantada. Era meia noite, e perpassavam em redor de mim as larvas do terror, agitadas pelo lampejar tremulo das lampadas, suspensas no altar do Santissimo Sacramento. O coveiro, afeito a lidar com os mortos, tremia, e largava machinalmente a enxada com que afastava as camadas da terra. Não posso dizer-lhe até que ponto fui enganado pelas larvas que a desvairada phantasia, ou a mysteriosa realidade revocou em volta de mim... Estou quasi jurando-lhe que a vi... a ella... como nos dias da sua esplendida formosura illuminada pelo resplendor da sua innocencia, purpureada do pejo com que a candura se rende ao imperio dos instinctos... Era ella, quando, nos primeiros tempos da nossa infancia, me offerecia de seu coração a parte que não podia dar a sua mãi, e a seus irmãos... Era ella, quando me perguntava o segredo d'aquella attracção irresistivel, que a arrastava para mim, que a entristecia sem motivo, que a fazia ambicionar uma riqueza imaginaria, que a fazia sonhar umas delicias que sua mãi lhe não explicava nem realisava com os seus carinhos... Foi assim que eu a vi, em quanto o ecco da enxada, que feria o seio da sepultura, reboava nas naves da igreja... Gelava-se-me de terror o pensamento... a phantasia esfriava-se ao roçar pela mortalha d'aquelles ossos, e eu sentia-me morto em metade da vida, quando a terra sacudida da enxada me vinha cahir aos pés. E depois... as larvas, que a razão não podia espavorir, tornavam a cingir-se com os pilares da nave, a pendurar-se nas grades do côro, a tremularem por entre os cortinados dos altares, e a esvoaçarem na abobada do templo como nuvens escuras, espedaçadas pela tempestade. Erguera-se do tumulo para ajoelhar, a meus pés... tinha a face lacerada pelos vermes. E era bella ainda... Devo ser sincero, meu amigo... É impossivel que a imaginação me mentisse... Ouvi-lhe a sua voz... senti o frio das suas mãos... ergui-a de meus pés... perdoei-lhe... chorei com ella... A voz d'um homem chamou a minha alma á realidade acerba d'aquella scena, que se me figurava um sacrilegio, uma profanação. Era o coveiro, que me dizia: «a enxada já topou com os ossos.» Esta nova, communicada friamente pelo coveiro, alvoroçou-me, e coou-me nas veias não sei que terror semelhante ao do sacrilego, que não tem ainda bastante barbarisada a alma pelo crime, e vacilla, horrorisado de si proprio, quando atira ao pavimento do altar as hostias contidas no calix, que rouba. Aquelles ossos, aquelle meu thesouro, ambicionado ha tres annos, tinham agora para mim uma superstição, um cunho sagrado, que me fazia na alma não sei que pesar semelhante ao remorso. Cheguei ainda a proferir a primeira palavra do coração, que se arrependera. Quiz deixar intactas aquellas cinzas. Luctei comigo para vencer um excesso de medo, um abuso, talvez, da imaginação. Não pude; mas não pude tambem retirar-me sem uma reliquia, um ser sem alma, uma recordação para as lagrimas, e uma gloria só minha n'este mundo... a gloria de possuir na morte uma companhia que tivesse sido incentivo de lagrimas, já que não pude conseguir como companheira na vida essa preciosa existencia, que me espera ha sessenta e seis annos na eternidade. Eis-aqui a reliquia, a testemunha immovel, terrivel, e silenciosa dos longos soffrimentos d'um homem, que atravessou uma longa existencia, sem conciliar com os prazeres do mundo a eterna viuvez da sua alma! Eis-aqui a caveira de Martha que eu revisto a cada instante das feições com que a vi partir d'este mundo. Ha alli n'aquellas orbitas uns olhos que me vêem... olhos mais penetrantes que os da vida, porque, nos sonhos angustiosos d'esta paixão desastrada, eu vejo sempre esta caveira, animada umas vezes do gracioso riso da innocencia, outras vezes das contorsões freneticas da desesperação... Ha alli n'aquelles ossos, onde os labios articulavam hymnos dos anjos, uns labios que, a cada instante, me balbuciam um perdão... E tenho momentos de inferno nas minhas dolorosas contemplações, aqui diante d'esta redoma... Ás vezes juraria que essa caveira estremece em convulsões rancorosas contra mim, balbuciando o nome do homem, que a levou comsigo á sepultura!... Então... sinto-me demente, porque tenho ciumes do nada... ciumes d'estas cinzas esquecidas no mundo... ciumes da memoria d'outras cinzas, que, ha tres quartos de seculo, esperam o dia final... É lamentavel a situação d'este pobre velho, que não pôde roubar-se a uma agonia, das que o mundo reputa chimeras, não é assim? Deixe-me agora dizer-lhe o meu segredo, que esse ainda eu lh'o não disse, nem lh'o diria, se lhe não acreditasse umas lagrimas que lhe vejo nos olhos. Eu creio em Deus, como creio na vida. Creio na vida como creio na dôr. O que eu não creio é na morte. A morte é uma palavra convencional, com que os homens explicam a passagem de sobre a terra para o seio d'uma nova existencia. A immortalidade é uma idêa abstracta de tudo que é comprehensivel aos homens. O homem não explica a immortalidade, em quanto não sobe um grau na escala dos seres intelligentes. Veja se me comprehende... Ha uma escala de seres que principia na materia bruta, e termina nos espiritos. As funcções do espirito, sem fórmas corporeas, pertencem á creatura, superior ao homem. Ora, o homem não explica essas funcções, que devem ser a sua futura existencia, pela mesma razão que o animal, inferior ao homem, não comprehende as funcções do pensamento aperfeiçoadas, mas não perfeitas, no homem. Todos os seres, por tanto, vão subindo na escala da intelligencia. Todos se transfiguram de fórma em fórma até deixarem na terra o involucro da materia, e vagarem nos espaços incognitos como vagam os espiritos. É lá em cima, nas proximidades do grande mysterio, ao clarão da eterna luz, que se lê o livro de Deus. É nas regiões, que a minha alma adivinha, que eu devo sentir pelo orgão espiritual em que recebi a interminavel impressão de agonia, que foi na terra a minha lenta peregrinação. O amor ardente e sublime não é um attributo do espirito? Aquelle que muito ama, e muito devorado morre de paixões grandes e ideaes, não é um propheta da vida futura, uma preexistencia do futuro amor? A não ser o amor, qual será a existencia do espirito? Conheço que o fatiguei... Pois, em verdade, lhe digo que quiz elevar o seu espirito á altura das minhas grandes doutrinas, do meu querido segredo. Quiz convencel-o, não digo bem, quiz enthusiasmal-o por essa eternidade em que ahi se falla, despida de affectos, de poesia, de esperanças, e... deixe-me dizer-lhe... indigna de Deus e dos homens... Meu amigo, ha na minha vida um oasis. Tenho exaltações de jubilo, aqui, n'este quarto, onde conto, ha perto de setenta annos, os minutos da minha existencia. Este goso é a minha convicção na immortalidade... É a minha esperança, confirmada pela meditação e pela sciencia, de que hei-de encontrar essa alma, que tem vindo aqui revelar-me os segredos do céo... Basta... Seja digno da minha confidencia... Não diga ás turbas de Villa Real os segredos de D. João de Noronha. Aqui escarnecem-se os que soffrem, logo que não soffrem pelas más colheitas do vinho, ou pela barateza dos cereaes. Não falle a linguagem dos espiritos, onde a materia organisada dispõe do machinismo da bocca para lhe dar uma gargalhada em resposta.» D. João de Noronha despediu-me. Desde esse dia foram mais da alma e da intelligencia as nossas communicações. Aprendi com elle a sciencia do espiritualismo. Se depois me materialisei, é porque a faisca d'aquelle genio não me tinha abrasado mais que a superficie da materia. O espirito tem a força dos imponderaveis. A força da materia póde muito bem calcular-se pela força dos vapores... _tantos cavallos_. Pergunta-me uma senhora de critica muito fina: --Como se explica o casamento de D. João de Noronha aos 86 annos de idade, com uma donzella sua contemporanea?! --De uma maneira muito simples. As nupcias de D. João não podem considerar-se physicas nem moraes. «Absurdo!--replica a espirituosa dama.» Está enganada, minha senhora. D. João tinha uma pequena fortuna, e queria deixal-a a uma creada, que o servira desveladamente toda a sua vida. D. João encarava philosophicamente as formulas sacramentaes do casamento. Achava-o utilissimo como carimbo de contracto civil. Casou-se para recompensar uma creada que lhe consolou muitas lagrimas, e lhe enxugou nas faces mortas as ultimas que elle chorou. Era digna do sacrificio. Poucos dias supportou a viuvez. --E a caveira?--perguntou ainda a amavel syndica dos meus romances. --A caveira deve estar confundida nos ossos de D. João de Noronha. A viuva cumpriu religiosamente as suas ordens: envolveu-a na mesma mortalha. UMA PRAGA ROGADA NAS ESCADAS DA FORCA. UMA PRAGA ROGADA NAS ESCADAS DA FORCA. Este romance não devera chamar-se «romance.» Desde que esta palavra é o atilho onde se enfeixam as mentirosas invenções do escriptor phantastico, não ha historia verdadeira que possa, como tal, recommendar-se com aquelle titulo. Estes acontecimentos, expostos aqui, segundo o formulario romantico, e affeiçoados ás leis do estilo romantico, são verdades que não deram brado, nem se gravaram na memoria da geração que as viu e as não comprehendeu. Na vida moral da sociedade ha phenomenos cuja causa ninguem estuda. No drama da familia ha lances que são do dominio do publico, e o publico não póde, ainda que o tente, explical-os. Nas attribuições individualissimas do homem ha phases extraordinarias de soffrimento, que esta sociedade de entranhas crueis lhe recrimina, reputando-lh'as effeitos necessarios das causas, consequencias do crime voluntario. A sociedade, a familia e o homem expiam incessantemente a culpa do homem, da familia, e da sociedade. Opera-se uma continua redempção do genero humano. O homem é, desde o seu principio, a victima da culpa com o labio collocado no calix da agonia. A vida sobre a terra é uma interminavel expiação. Eu pago pelos crimes de meu pai, meus filhos expiarão meus crimes, e o ultimo ser vivo da animalidade intelligente será o holocausto do primeiro homem criminoso. É forçoso recorrer ao inconcebivel, ao sobre-natural, ao mysticismo da providencia occulta para comprehender o que vulgarmente se diz «fatalidade.» Na historia, que vai ser lida, é tão sensivel esta necessidade, tão aterrado se sente o espirito diante d'um facto consummado, que eu não tive escrupulo religioso ou philosophico em subordinar um encadeamento de infortunios d'uma familia á _praga rogada nas escadas da forca_. I. Bernardo da Silva era um filho bastardo de um nobre de Vizeu. Do ventre materno passou á roda dos expostos, e d'ahi aos cuidados d'uma pobre mulher d'aldêa. Aos dez annos não conhecia pai; e sua mãi, mulher do povo, arrastada sobre a lama da plebe toda a sua vida, morrera com o segredo do _nobre_, que se dignára descer até ella para honral-a com deshonra. Bernardo, aos dez annos, era aprendiz de alfaiate, e de todos os seus companheiros era elle o mais despresado, porque tambem era o mais preguiçoso. O rapaz vivia triste como se a idade lhe permittisse comprehender a dôr immensa d'um grande desastre. Lá dentro n'aquelle coração infantil fallava uma prophecia funebre. Com os olhos sempre extaticos no horisonte negro do seu futuro, o pobre moço não tinha uma hora livre para o trabalho. Muitas vezes uma bofetada acordava-o d'aquelle lethargo; e o braço, que estava suspenso com a agulha, continuava a tarefa molhada de lagrimas. Aos 13 annos era ainda um aprendiz de alfaiate, repellido d'este para aquelle mestre, desacreditado em todos, e inutilmente espancado por todos. Chamavam-no incorrigivel, e elle mesmo conheceu que o era. Abandonou a agulha, e foi servir em casa de Francisco de Lucena. Era ahi, como em toda a parte, coconhecido pelo «Bernardo _Engeitado_.» Nunca ninguem se lembrou de reputal-o filho _d'alguem_: nem Lucena se lembrou, alguma vez, de que um de seus muitos filhos, atirados á roda, poderia ser seu lacaio. Bernardo era creado de taboa. II. Este officio era-lhe mais generoso que o de alfaiate. Tinha muitas horas livres para a sua melancolia, e muitos escondrijos no amplo palacio de seu amo para refugiar-se d'uma sociedade que elle detestava sem saber porque. Este viver excepcional n'aquella classe galhofeira, esturdia, e estragada, excitou a curiosidade dos seus companheiros, e, depois, a dos amos. Aquelles chasqueavam-nos com desabrimento: estes admiravam-no por compaixão. Bernardo chorava sem motivo. Sorria-se com violencia. Era humilde com um não sei que de estranha delicadesa. Destacava-se da sua classe com um ar orgulhoso, mas não calculado. Cumpria as suas muitas obrigações, e ninguem sabia quando as cumpria. Estas qualidades, rarissimas vezes encontradas n'um lacaio, tornavam-no assumpto de estudo para os amos que principiavam a interessar-se na analyse d'aquelle obscuro engeitado. Guardadas as inauferiveis distancias que separam o senhor do servo, os fidalgos souberam que Bernardo desejava muito saber lêr, e gastava a maior parte da noite soletrando o abecedario, e decorando as lições que o mordomo da casa lhe dava nas horas de desenfado. Qualquer que fosse o impulso que a isso o levou, é certo que o amo, por um nobre impulso, permittiu que o rapaz fosse a uma escóla, e para isso alliviou-o dos encargos de moço de taboa, e levou-o á jerarchia de escudeiro do menino mais velho. III. Um anno depois, Bernardo fizera admiraveis progressos. Lia com intelligencia do que lia; escrevia com acerto, e aprêndera só comsigo a grammatica portugueza, visto que seus amos lhe não tinham permittido esta segunda parte dos seus estudos. Seria um caprichoso luxo permittir ao servo sciencia que os amos não tinham! O muito illustre Francisco de Lucena não daria o menor dos seus galgos pela vasta sciencia do Lobato. E, talvez, tivesse razão. Em casa de fidalgos d'esta bitóla, quando um creado adquire a confiança dos amos, ha sempre para isso uma de duas razões. Ou o creado, devasso como elles, encobre astuciosamente as devassidões dos amos; ou se torna estimavel pelo zelo honroso com que procura encobrir-lh'as, já que não póde reprehender-lh'as. Bernardo estava na segunda razão. Os filhos de Lucena eram livres e desmoralisados a não poder ser mais. Quizeram captar a benevolencia do servo, não para aconselhal-os, que não desciam elles a isso, mas para acompanhal-os em emprezas difficeis, d'aquellas em que o braço do plebeu é muitas vezes a salvação das costas do fidalgo. Não o conseguiram nunca; mas tambem não tiveram de arrepender-se da confiança d'esse convite. Bernardo exercia uma influencia admiravel sobre os nobres libertinos. Era a superioridade da intelligencia. Ouviam-no, e maravilhavam-se do acerto das suas idêas, e da linguagem escolhida com que o engeitado se sahia! O facto de ser engeitado era em Bernardo, talvez, um motivo de superstição n'aquella casa. Se elle fosse reconhecido filho d'algum _borra-botas_, como em linguagem nobliarchica se chama um plebeu, de certo lhe não dariam a importancia de o considerarem pela intelligencia. Mas o mysterio, a possibilidade de ser vergontea infeliz d'um tronco illustre, cingiam-lhe a fronte d'uma aureola entre nuvens, que poderia talvez, mais tarde, dissipar-se, e deixar na plenitude da sua luz aquelle fructo do amor criminoso d'alguma raça nobilissima, mais ou menos aparentada com os Lucenas! Tudo isto era possivel; mas o que elles julgariam, entretanto, impossivel, é o que vai lêr-se. IV. A familia que Bernardo servia compunha-se de pai, mãi, tres filhos, e uma filha, de todos os irmãos a mais nova. Por então contava quinze annos. Era bonita, mas pobre. Os morgados não a pediam; os filhos segundos tambem não; e a sensivel menina precisava amar, porque o seu coração era da tempera d'aquelles que não sabem conceber sómente o amor com a condicional do casamento. Eulalia não tinha a mais superficial tintura de instrucção, e por isso não podemos, em boa fé, chamar-lhe romantica. Não era janelleira, nem rapinhava da papeleira dos irmãos o perfumado papel setim para deposito de semsaborias amorosas, e por isso não podemos chamar-lhe douda. Era uma mulher, e n'isto está dito tudo. Este Bernardo é que realmente se parecia muito com os nossos poetas de aspirações ferventes e meditações profundas. Mas não era impostor, nem romanticamente parvo. O rapaz tinha uma alma como poucas, e uma tristesa inconsolavel como nenhuma. «A minha organisação--dizia elle--é um aborto, uma enfermidade incuravel.» Eulalia sympathisava com aquella tristesa, e com a figura do rapaz. Achava-lhe traços de semelhança com seus irmãos, e via n'elle o que ella chamava «cara de pessoa de bem.» E, com quanto eu deteste esta maneira de classificar as caras, porque não conheço as «caras de pessoas de mal» tenho-me visto em circumstancias forçadas de dizer o mesmo, porque ha n'este val de lagrimas umas caras que não exprimem bem nem mal, e essas são as peiores caras. Bernardo não se lembrou nunca de fazer sentir á cozinheira da casa, e menos se lembraria de accender o fogo do amor no illustre coração d'uma Lucena, com quem em toda a sua vida fallára tres vezes. Eulalia passou da dôce sympathia ao amor abrasado, e do amor abrasado á paixão violenta. Por mais finos e eloquentes olhares que a fogosa menina lançou ao escudeiro, o escudeiro ou não dava por elles, ou explicava-os de qualquer modo, com tanto que não ousasse ensoberbecer-se d'aquelle affecto disparatado. E Eulalia desesperava-se! V. Francisco de Lucena espreitava a opportunidade de empurrar a filha para fóra de casa. Aspirou, primeiro, aos morgados; mas encontrou-os pouco apreciadores de formosura e fidalguia. Recorreu, depois, aos burguezes ricos, e encontrou um negociante d'alto bôrdo, que recebeu a proposta com affabilidade e trabalhou desde logo em levar a fim um casamento que permittia aos filhos de seu filho appellidarem-se Lucenas. O pai annunciou á filha o seu rico futuro, e encontrou-a fria. Apresentou-lhe o noivo, e viu-a enjoada. O noivo, porém, era um rapaz de fina educação, d'alguma intelligencia, de brios que o ouro lhe estimulava, e de orgulho superior á sua classe, porque, ha 50 annos, a classe commercial era muito humilde, supposto já trabalhasse para esta época de barões commerciaes, que, digam lá o que disserem, é o mais palpitante triumpho da democracia. Para me não metter em graves questões sociaes, entenda-se que D. Eulalia repelliu a felicidade que seu pai lhe annunciára com tanto jubilo, e declarou-se sentimental, por tempo de quinze dias, fechada no seu quarto, sem querer vêr sol nem lua. Mas o pai apoquentava-a, sempre que podia, pintando-lhe a mesquinhez do seu futuro, e a pobresa de sua legitima, que orçaria talvez por tres mil cruzados. E era isto verdade. VI. E o peor era que o tal João Leite, noivo repellido, ficou amando desesperadamente D. Eulalia. Ferido no seu amor proprio, e envergonhado de tão má estreia, instava com Francisco de Lucena, lançando-lhe em rosto a imprudencia com que viera roubal-o á sua tranquilidade, não podendo contar com a obediencia de sua filha. Esta maneira de accusar vexava Francisco de Lucena, porque era pôr em duvida o seu poder paternal, e chamar-lhe fraco, imputação que elle odiava ainda mesmo que se tratasse de vencer a repugnancia de uma fraca menina. Redobravam as mortificações, e Eulalia, immovel como o seu infeliz amor, offerecia-se de bom grado á vingança paternal, mas dizia, em linguagem tragica, que só reduzida a cadaver passaria para a posse do tal miseravel, que não tinha vergonha de perseguir uma mulher que o despresava. O pai realisou o dito popular: «casar, ou metter freira.» Eulalia optou pelo segundo, e os preparativos para entrar no convento principiaram. O amor faz a mulher varonil. Temos visto almas de lama apresentarem uma energia corajosa, quando o tonico do amor lhes vibra as cordas embrionarias d'um coração, que parece arfar de improviso ao repentino choque, ao rapto da paixão violenta. Nas vesperas da sua entrada no mosteiro, Eulalia escreveu tres cartas. Uma a seu pai. Dizia-lhe que amára um só homem e viveria d'esse amor desgraçado toda a sua vida. Outra ao escudeiro. Dizia-lhe que tivesse compaixão d'ella, e chorasse uma lagrima em troca das que ella chorára, e choraria até á morte. Outra ao seu implacavel pretendente. Dizia-lhe que o amaldiçoava com todo o odio do seu coração. Que lhe atirára á cara com um _não_, e nem assim o envergonhára de continuar a perseguir uma mulher. Esta correspondencia conservou-a Eulalia até ao momento em que transpoz o limiar do convento. O seu primeiro acto foi dar-lhe o destino competente. Depois, chorou, chorou, e attrahiu em volta de si os carinhos da communidade que a mortificava com as suas frias consolações. VII. Francisco de Lucena recebeu com espanto semelhante carta. Bernardo da Silva embruteceu-se ao lêr a sua. João Leite deu quatro murros n'uma mesa, e sentiu-se suspenso no ar por uma legião de demonios raivosos. Cada um fez seu papel; mas todos tres reunidos deviam formar um grupo digno da melhor caricatura inédita! Francisco de Lucena correu ao locutorio do mosteiro, e fez alli apparecer imperiosamente a filha. Quiz forçal-a a declarar o nome do homem que a preoccupára até a fazer má filha. Não lhe arrancou a menor revelação. Foi por outro caminho para chegar ao seu fim. Fez-se sentimental; lamentou, como bom pai, as paixões invenciveis d'uma filha que se présa com extremo carinho; contou historias análogas, que acabavam todas por casamentos desiguaes, mas nem por isso menos venturosos. Pediu a sua filha o nome d'esse homem que a impressionára, e fez-lhe ante-gostar a possibilidade de casar-se, se não viesse d'alli uma absoluta deshonra para a sua familia. O amor fez heroes, mas tambem faz patetas. Eulalia desceu da sua altiva energia ao raso da toleima. Declarou o nome... o nome de quem? o nome, sem nome, do engeitado, do aprendiz de alfaiate, do lacaio, do escudeiro!... Que horror! Nunca se viu um solavanco mais desamparado que o salto de tigre que Francisco de Lucena deu contra a grade que o separava da filha! Por Deus! que a esgana se lhe chega! A pobre menina, arripiada como quem vê um lobo com as fauces vermelhas, e as unhas recurvas, foge pelo dormitorio, e fecha-se no quarto. VIII. Lucena correu a casa com os olhos injectados de fogo. Precisava d'uma victima! Encontrou no caminho João Leite, mas este não podia justificadamente ser sua victima. João Leite mostra-lhe a carta que recebêra de Eulalia. Isto foi exacerbal-o. «Não se lhe dê de ser repellido por essa infame,--lhe disse elle--Eu vou provar-lhe que sou pai!... Essa mulher amava um escudeiro... um lacaio... um _engeitado_...» Entrando em casa, procurou o «engeitado.» Encontrou-o ainda estupidamente absorvido na meditação d'aquella carta. A entrada rapida que fez no quarto não deu tempo a que Bernardo escondesse a carta que tinha aberta nas mãos tremulas. Lucena arrancou-lh'a com uma convulsão de raiva superior á furia d'um demente. Passou-a pelos olhos, e, sem articular um som, lançou mão d'uma cadeira, e, á segunda pancada, Bernardo tinha a face coberta de sangue. Era um sangue innocente que reclamava justiça. Era um sangue innocente que pedia a intervenção de Deus. A justiça, filha legitima do céo, virá mais tarde salpicar d'aquelle sangue a face de quem o derramava. Bernardo, ferido, e pisado de successivas pancadas, não pronunciára uma só palavra durante este infernal martyrio. Impellido por pontapés, foi lançado fóra da porta do quarto. As forças faltaram-lhe. O sangue corria a jôrros. Esvaiu-se-lhe a cabeça, e cahiu. O fidalgo chamou dous creados, e mandou pôr aquelle homem fóra da porta. Era ao anoitecer. O engeitado foi arremessado á rua. Quando recuperou os sentidos, achou-se frio. Ergueu-se. Olhou com os olhos da alma para a sua consciencia, e sentiu pela primeira vez vontade de sorrir da sua desgraça pelos labios molhados de fel. E riu-se. Era um sorriso semelhante ao dos anjos. As almas que podem sorrir assim são as que Deus elege para a santidade da bemaventurança. IX. Bernardo procurou um refugio em casa de uma mulher pobre que o tractára sempre com amor, matando-lhe a fome, quando a aprendizagem de alfaiate lhe não valia o pão de cada dia. Esta mulher fôra ama da roda no tempo em que Bernardo lá fôra lançado. Suppunha ella que talvez o tivesse alimentado ao seu seio por algumas horas, e esta só conjectura attrahia-a para elle com instincto maternal. O engeitado curou-se dos leves ferimentos, e pediu a Deus que lhe inspirasse um destino. Esperou. Em Vizeu fallava-se muito d'este successo, divulgado por Francisco de Lucena, e por João Leite. Bernardo era procurado para ser punido; e quem mais diligencias fazia para isso era o juiz de fóra Paulo Botelho. O honrado moço, quando se viu na penosa situação de agenciar a sua vida, por não poder sahir da pobre casa em que vivia, impellido pela sua innocencia, procurou o juiz de fóra, e expoz-lhe com a mais eloquente naturalidade a injustiça com que fôra maltratado e com que estava sendo perseguido. Paulo Botelho quiz espancal-o com um chicote por ter tido a audacia de entrar em sua casa sem ferros aos pés. Olhou em redor de si procurando um aguazil para fazel-o prender traiçoeiramente; mas o generoso mancebo, adivinhando-lhe as intenções, disse que não precisava fingir-se; que elle dava a sua palavra de honra de não retirar da casa em que estava vivendo, e que mandasse sua senhoria captural-o quando quizesse. O juiz riu-se da _palavra d'honra_ na bocca d'um creado de servir, e mandou-o embora, por não ter a proposito um meirinho. Bernardo encontrou ao retirar-se, nas escadas do ministro, João Leite, que apeava d'uma liteira, segundo o uso dos nobres, comprado pelo ouro do burguez opulento. João Leite fixou-o com ar de soberano despreso, e perguntou-lhe: --És tu o lacaio de Francisco de Lucena? --Fui o lacaio do snr. Francisco de Lucena--respondeu Bernardo com dignidade. --E tens o atrevimento de apparecer entre pessoas de bem? Bernardo suffocou uma resposta amarga, e fez uma continencia respeitosa para retirar-se. --Vem cá, miseravel!--tornou João Leite--tu és o amante da filha do teu amo? --Respeitei-a muito, por ser a filha de meu amo, em quanto o servi. Hoje respeito-a, porque lhe não conheço a menor falta que a deshonre! --Nem ao menos a deshonra de receber as tuas affeições, lacaio? --Eu não lh'as offereci nunca, senhor. --Offereceu-t'as ella, sevandija? --Não, senhor. --Mas ella escrevia-te... --Sem ser criminosa, por isso... --Então achas que não é crime escrever a um bandalho? --Será, se v. s.^a o quer... --Tenho pena de seres um reptil que faz nojo esmagar com a solla da bota! Se tivesses um nome... --Tenho um caracter, senhor! Bernardo respondeu com altivez; João Leite riu-se com despreso, e olhando-o da cabeça aos pés, replicou: --Tu sabes que não podes ter caracter, engeitado!? --Então, terei um braço... --Um braço!--atalhou o fidalgo em projecto, imprimindo-lhe um valente pontapé, que o fez descer tres escadas maquinalmente. Bernardo assumira toda a dignidade do homem de coração ultrajado. João Leite achou-se comprimido entre os braços do _sevandija_ que elle suppunha fugir ao primeiro pontapé para evitar o segundo. Quiz desfazer-se, de prompto, d'este empecilho, e não pôde, porque os pés falsearam-lhe, e as costas bateram-lhe com todo o peso sobre os degraus de pedra. Tirou rapido de um punhal, e roçou com elle duas vezes sobre o braço direito de Bernardo, que o desarmou, no acto em que uma terceira punhalada lhe resvalára no peito. O engeitado sentiu-se ferido: vacillou um instante na resolução que se debatia entre o homicidio e o perdão. Venceu o primeiro. Aquelle punhal tinto de sangue innocente, pela segunda vez, derramado, entrou no coração de João Leite, e matou-o. Isto foi obra d'alguns segundos. João Leite gritára nas convulsões da morte; acudiram os creados, e encontraram Bernardo da Silva, de braços cruzados ao pé do cadaver, que vibrava nos seus derradeiros estorcimentos. Paulo Botelho tambem acudiu. Primeiro recuou aterrado: depois gritou «matem esse homem!» E vendo que ninguem de prompto lhe aceitava o diploma de assassino, mandou-o carregar de ferros. Bernardo caminhou para o carcere, com a fronte altiva, com nobreza de passo, com serenidade de consciencia e maneiras d'um principe, segundo a linguagem popular dos que o viram. X. Foi processado. Paulo Botelho desenvolveu uma espantosa energia no andamento d'esta causa crime. Erguia-se todos, os dias, sofrego da escrever uma sentença de forca. Os depoimentos eram todos contrarios ao infeliz. Um só homem protegeu esse preso; sabia-se que era um ancião que lhe levava umas sopas diariamente, e palavras consoladoras de esperança sem esperança. Eulalia, sabendo estes acontecimentos até á vespera do dia em que o escudeiro devia ser condemnado, requereu que queria ser ouvida em juizo. Não lhe admitiram o seu depoimento. A pobre menina, inspirada da eloquencia do martyrio, entrou um dia no côro, quando a communidade orava, e invocou o testemunho de Jesus Christo, exclamando, de modo que a escutasse o povo que estava na igreja: «Declaro que esse infeliz homem, que vai morrer, depois de martyrisado por meu pai, e apunhalado por um homem que eu despresei, declaro diante de Deus e dos homens, que esse infeliz nunca me disse uma palavra só para que eu o amasse. Fui eu que o amei, fui eu que lhe escrevi, quando entrei n'este mosteiro, fui eu que o fiz desgraçado, mas em recompensa hei-de amal-o toda a minha vida, e hei-de unir-me a elle na presença de Deus!» Era uma demencia! Foi grande o assombro dos que a ouviram. O ecco d'este grito chegou aos ouvidos de Paulo Botelho, que estava presente; mas a sua alma fôra cerrada pela mão corrupta do ouro. O povo murmurava, e dizia que não havia de ser enforcado o escudeiro. Pobre povo, n'aquelles dias, se tentasse tirar das mãos d'um juiz o seu instrumento inauferivel, o carrasco! XI. Bernardo foi condemnado á pena ultima; Ergueu-se uma forca nas proximidades do delicto, entre a casa do juiz, e a de Francisco de Lucena. Eulalia exaltára-se no martyrio até causar receios de loucura. Inspiravam-se de uma dôr de morte as exclamações pungentes que soltava a cada ruido que ouvia semelhante ao arranco retrahido d'um justiçado. O espectaculo da forca era a sua idêa fixa, desde o momento que uma religiosa imprudente lhe annunciou o destino de Bernardo da Silva. A infeliz, na madrugada do dia da execução, fugiu da cella com os cabellos em desordem, com as faces chammejantes de febre, com os olhos embriagados de delirio, e com o coração a estalar-lhe de uma dôr que a endoudecia. Chegando á portaria não houveram forças humanas que a contivessem. Os ferrolhos cederam ao impulso d'uma fraca mulher, forte da sua desesperação; e esta virgem, com habitos de noviça, e bella, na sua agonia, como um corpo epileptico que se levanta amortalhado do esquife, corria por entre as multidões que principiavam a agglomerar-se para testemunharem o desconjuntar dos ossos do pescoço d'um padecente entre as mãos do carrasco, seu irmão, ambos filhos do mesmo Deus, ambos remidos pelo sangue do mesmo Christo. Viram-na as multidões passar; muitos a conheceram: alguns pronunciaram o seu nome, mas aquella pomba, ferida de morte, era um cadaver que se movia impellido pelo choque da pilha galvanica. Erguera-se um alarido na cidade. As turbas corriam na direcção da infeliz, a quem chamavam douda; mas não ousou alguem embargar o passo áquella mulher que parecia fascinar com a magestade da sua demencia. Os que a seguiam esperavam vêl-a entrar em casa de seu pai. Enganaram-se. Eulalia subiu as escadas de Paulo Botelho, e entrou no salão onde fôra lavrada a sentença de cadafalso para Bernardo da Silva. Paulo Botelho estremeceu na cadeira, quando viu aquelle alvejar de uma larva, ajoelhada nos degraus da tribuna. Deu-se um profundo silencio de alguns minutos. Eulalia já não podia coordenar as idêas que poucos dias antes clamára no côro. O sorriso da loucura, o gemido suffocante, uma lagrima embebida logo no ardor das faces, e algumas palavras entaladas, e apenas intelligiveis, eram alternativas que a tornaram mais lastimavel durante alguns minutos. A mulher e tres filhas de Paulo Botelho, que a viram entrar, correram ao tribunal, e quizeram arrastal-a d'alli. Era impossivel. A estatua parecia chumbada sobre o seu tumulo. A familia do juiz julgou conveniente empregar o insulto como solução. Fallavam do justiçado com certa nauzea, que ellas suppozeram ser o balsamo para a ferida mortal de Eulalia. Paulo Botelho, coadjuvando as razões da sua familia, cobria de improperios affrontosos o homem que, pouco depois, havia de perdoar as injurias com a cabeça no laço da forca. A exaltação afflictiva de Eulalia tinha tocado o ponto culminante da morte, ou da alienação irremediavel. --Innocente! Innocente!--eram os gritos unicos, as derradeiras palavras que os labios d'aquella mulher tinham de proferir. XII. N'este momento entrou um homem que redobrou o espanto. Era Pedro Leite, pai de João Leite. Este homem fez signal de querer fallar. Attenderam-no todos com religioso respeito. As suas palavras foram estas: --Perdôo ao assassino de meu filho! O sangue d'esse homem cahirá sobre a minha face! Matou defendendo-se d'um aggressor infame! Senhor juiz de fóra, requeiro a suspensão da execução da sentença. Eu sou parte, e declaro innocente o réo! Seguiram-se minutos d'uma estupefacção natural. Eulalia voltou os olhos para o homem que fallára, quiz arrastar-se de joelhos aos pés d'elle; não pôde; a impressão devia matal-a, ou resuscital-a... desmaiou a meio caminho. O juiz era o algoz moral creado pelo ouro, assim como o carrasco physico fôra creado pela lei. Não podia eximir-se a pegar do cutello, e seguir seu caminho. --É tarde!--respondeu elle. --Não é tarde!--replicou Pedro Leite, e continuou com solemne exaltação:--Tarde, senhor juiz, é depois que o tribunal do mundo se fecha atraz d'aquelle que vai entrar no tribunal de Deus! Tarde, é quando um juiz de entranhas ferozes se apresenta no banco dos réos condemnados com a face borrifada de sangue innocente! --Basta!--exclamou Paulo Botelho com authoridade! --Pois sim... basta! mas, abaixo de Deus, invoco o testemunho das pessoas que me escutam. Declaro que lavo as mãos d'este sangue innocente que vai ser derramado! O povo murmurou com acanhamento, com a consciencia cobarde da sua nullidade, mas balbuciou não sei que palavras que irritaram o juiz. --Não se trata só de punir o assassino de João Leite!--exclamou o juiz--trata-se de castigar a affronta que recebeu um nobre, feita por um lacaio que ousou levantar olhos de amante para sua filha! --Não, não!--gritou Eulalia, erguendo-se com impeto, com as mãos postas, e cahindo outra vez sobre os joelhos. O cynico já não tinha coragem para tanto! Soára a hora do ultimo mandato ao carcereiro. Expirára o ultimo instante de oratorio. --Cumpra-se a lei! Disse o juiz, e fez menção de retirarem-se as ondas de povo que tinham concorrido em tropel, chamadas pelos gritos de Eulalia, e pelo perdão publico de Pedro Leite. Eulalia foi conduzida em braços para o interior da habitação do juiz. XIII. A procissão onde a impudencia collocára um Christo, o Deus da caridade, nas mãos d'um padecente, que hia ser esganado!... a procissão, onde se via um homem de tunica branca, um algoz de cutello e alcofa, alguns sacerdotes d'um Deus misericordioso!... a procissão descia terrivel de repulsiva solemnidade para o açougue d'aquella rêz! A tumba da misericordia fechava aquella orgia de sangue! Era um insulto a Deus! o cadaver d'um homem atirado á face do Creador! um escarneo satanico á intelligencia, e ao coração da humanidade! O prestito parou na praça do sacrificio. Bernardo com os olhos fitos no céo via nascer a risonha aurora da eternidade. Sorriam-lhe os anjos, e a justiça de Deus mostrava-lhe o seu regaço. A morte do justo era um crepusculo de nova existencia a alumiar-lhe o rosto. Inspirava devoção aquelle seu santo sorrir para o seio do céo que se lhe abria! Trazia nas mãos a imagem do Redemptor; mas lá em cima via elle o Espirito Creador, a grande alma, onde se refugiam as almas dispersas na face d'este mundo, e perseguidas pelo demonio da ira, e da vingança, eternamente encarnado no homem, a quem a sociedade entregou o azorrague da flagellação do virtuoso. Bernardo caminhava a passo firme para a escada da forca. Estavam contrahidas as respirações. Um gemido, menos suffocado, podia ser ouvido por quinze mil almas que vieram a contemplar aquelle apparelho de morte, segundo a lei, _formulada pelas inspirações do Evangelho_! pelo codigo dos perdões! pelos preceitos do Filho de Deus que morrêra, perdoando! XIV. Através da multidão abriu-se uma clareira para deixar passar um homem, que devia representar um principal papel n'aquelle festim da lei. Convergiram todas as attenções para aquelle ponto. Era Pedro Leite--ainda o pregoeiro da innocencia de Bernardo, com a face cadaverica das longas noites que chorára sobre o tumulo de seu filho unico. Quem disse a este homem que Bernardo da Silva era um innocente? Que força occulta o arrasta a abençoar nas escadas da forca o assassino de seu filho? Phenomenos occultos da Providencia! A voz de Deus, soando pelos labios do mysterio! Explicai-me as operações de Deus, e eu vos explicarei a inspiração sobrenatural que obriga a balbuciarem o perdão os labios, que beijaram morto um filho estremecido... Pedro Leite aproximou-se do justiçado. Ninguem lhe embaraçou o passo. Cheio de magestade, de poesia funebre, e de santo terror, fallou assim: «Eu venho pedir o seu perdão á beira do patibulo. Fui eu que o arrastei até ao tribunal em que foi condemnado; mas não sou eu que o arrasto aqui. Bradei em favor da sua innocencia. Pedi, ha momentos, a suspensão d'este acto, em que a minha dôr será mais... muito mais prolongada que a sua. Não me ouviram: impozeram-me silencio, e mandaram-me sahir do sanctuario da lei, que resfolegava sangue pela bocca do seu sacerdote. Venho pedir o seu perdão nas escadas da forca, e vasar o fel, que me devora a consciencia, na consciencia do juiz implacavel que pede a sua cabeça a altos gritos!» Ouviu-se um prolongado murmurio. Era a onda popular que refervia sopeada entre as rochas da sua impotencia moral, n'aquelles dias, em que o sangue d'um plebeu continuava a operação regeneradora do sangue de Jesus Christo. Bernardo ouviu com presença de espirito a exclamação de Pedro Leite. «Eu lhe perdôo!» Foram as suas palavras unicas. Choraram-se então muitas lagrimas. A piedade teve uma explosão, que as cronhas dos soldados reprimiram. As turbas queriam rasgar o quadrado para arrancarem da morte um santo. Este conflicto foi serenado por outro mais sublime. Ouviu-se uma voz. Viu-se um homem que sobresahia entre as molas populares. Era o velho, protector unico de Bernardo da Silva, durante a sua prisão. Poucos o conheciam. Foram estas as suas palavras: «Nobre senhor Francisco de Lucena! vem vêr teu filho que morre enforcado! Nobre senhor Francisco de Lucena! vem vêr o filho da mulher que deshonraste, como é nobre nas escadas da forca! Nobre senhor Francisco de Lucena! vem vêr teu filho, o filho de minha filha, que borrifa os teus pergaminhos com o teu sangue illustre!» E calou-se. Calaram-se todos. E aquelle homem lá estava erguido como o anjo dos tumulos á espera que Deus mande quebrar a lousa d'uma mulher que ahi falta n'esse trance afflictivo! Essa mulher morrêra, deshonrada, suffocada pela mão da ignominia, a que a soberania fidalga de Francisco de Lucena a abandonára. Esse ancião era o pai d'essa mulher, unico que recebêra em seus braços o filho da deshonra, unico sabedor d'aquella existencia, que acompanhou sempre, porque lhe marcára um braço com uma cruz. Desde o ventre á forca, de longe, desconhecido, com o segredo da deshonra de sua filha abafado no coração, este homem seguira os vestigios do neto, sem declaral-o nunca, porque um appellido illustre não o salvava a elle d'uma _illustre_ ignominia. Que impressão fez este homem nas turbas? A do espanto. Mas, momentos depois, chamavam-lhe Doudo. Por ordem do juiz de fóra hia ser preso o demente. Aproximou-se a justiça d'el-rei. «É doudo...!» dizia o meirinho ao lançar-lhe a mão. «_Não é doudo_... é MORTO... » responderam algumas vozes. Morto, sim! XV. Hia consummar-se aquelle enredo de peripecias terriveis. Bernardo poz o pé direito na ultima prancha da forca. Voltou-se para o povo. Brilhou-lhe na face o clarão d'um outro mundo. A sua voz era melodiosa como o cantico do anjo da morte suavissima: mas n'aquelle todo via-se a terrivel magestade do anjo do dia final. As suas ultimas palavras foram estas: «Ouvide a praga d'um padecente, rogada nas escadas da forca: Que a justiça de Deus se cumpra na presença dos homens!» ........................................................................... ........................................................................... O povo voltou o rosto do aspecto hediondo d'uma face injectada de sangue negro. Outros viram-lhe uma onda de luz cingindo a fronte. N'esse momento ajoelharam muitos justos pedindo ao espirito do justiçado a sua protecção na presença de Deus! CONCLUSÃO. Passaram quinze dias. Eulalia de Lucena recuperára o juizo, e entrára no mosteiro. Um anno depois, professára. A sua vida foram tres annos de adoração extatica. Ouviram-na murmurar palavras celestes, como em dialogo. Dizia-se que um anjo devia apparecer-lhe n'aquelles arrobamentos. Chamavam-lhe santa, e adoraram-na morta. Passados quatro annos, Francisco de Lucena, sempre afastado de sua filha pela mão do remorso, morreu de repente no mesmo local em que fôra hasteada a forca. Simão Botelho, filho de Paulo Botelho, déra um tiro em seu pai. O pai quiz sentencial-o: deu-lhe sentença de forca, que depois lhe foi commutada em degredo perpetuo. Apenas desembarcou em Cabo Verde, abriu-se-lhe uma sepultura. Paulo Botelho, desembargador aposentado, dez annos depois, morria á vigesima quinta punhalada que recebêra, por não dar exactas informações d'um peculio de cincoenta mil cruzados que guardava em uma quinta nas visinhanças de Villa Real. A mulher de Paulo Botelho morria douda no hospital de S. José um anno depois. Restavam tres filhas de Paulo Botelho. Foram devassas até ao escandalo de serem arrastadas a um recolhimento por expresso mandado regio. Uma appareceu morta n'um aqueducto por onde procurára evadir-se. Outra casou com um homem que a retalhou de martyrios. A terceira enforcou-se no batente de uma porta. A Justiça de Deus Cumpriu-se na Presença dos Homens. A praga do justiçado nas escadas da forca teve o seu complemento do genero de morte que a ultima pessoa d'aquella familia se déra. Forca por forca. ........................................................................... Tendes a curiosidade das averiguações? Procurai em alguns cartorios de Vizeu a sentença pronunciada entre 1776 e 1780. REMATE. Não sou contumaz, nem me ufano de relapsia. De tudo que disse me desdigo, se algum inquisidor intoleravel deparar ahi heresia, contra-senso, atrevimento ou cousa que duvida faça contra Plutus, unico deus da unica religião cujo codigo penal me intimida. Ha cousas incriveis n'este volume? É que eu, e os meus amigos litteratos, poetas, jornalistas, e até redactores encartados de necrologios sabemos passagens que arripiam carnes e cabellos. Se o siso commum as não adopta, é que os chronistas do tempo formam, á parte, um _status in statu_, cousa inintelligivel aos que não sabem latim, por grande fortuna sua. N'este synhedrim ha uma moral, estragada se o quizerem, mas os evangelistas, que a propagam são Catões, com tanto que os não obriguem a inquietar a sadia tranquillidade dos intestinos. Aqui, não se sacrifica um dedo a uma pisadella, porque não vale a pena. É necessario escrever, visto que ha leitores. Eu, e os meus correligionarios, se até hoje não temos irradiado sobre a humanidade ondas de luz, é porque a humanidade precisava ser, primeiramente, operada na catarata. O luzeiro da civilisação aqueceu, não ha muito, a concha em que, por aqui, se escondiam muitos molluscos moraes, que vão sahindo agora a espanejar-se ao sol. Não quero dizer que os molluscos passassem a articulados. Póde muito bem ser que o leitor, ou leitora sejam ainda legitimos molluscos; mas a excepção deploravel não claudica a generalidade. E, por tanto: Eu, e os meus amigos, mencionados acima, considerando que a candeia não deve estar muito tempo debaixo do alqueire, nem os talentos (dinheiro) soterrados vencem juros: e tendo nós outro sim, em muito afan e desvelo desaffrontar a litteratura patria de injurias com que estrangeiros e nacionaes a desconceituam, desairando-a como pobre de romances, pela sua incapacidade inventiva--o que não só é malicia, mas até aleivosia: resolvemos escrever romances em que figurassem muitas pessoas nossas conhecidas, e outras, que viremos a conhecer no decurso d'esta meritoria tarefa. Pelo que, a mim, humilde entre os humildes apostolos d'esta idêa lucida, coube o quinhão de trabalho, que a posteridade me devolverá em gabos e applausos, e o futuro Plutarcho dos homens illustres d'esta freguezia de Cedofeita, em que tenho a honra de morar, não deixará de consignar nos fastos gloriosos. Disse. PATHOLOGIA DO CASAMENTO. DEDICATORIA. _Exc.^{ma} snr.^a D. Fulana._ Conceda-me v. exc.^a a gloria de offerecer-lhe um quadro d'esta galeria. Vai lêr um drama intitulado Pathologia do Casamento. _Pathologia_, minha querida snr.^a D. Fulana, é uma palavra grega, composta de _pathos_, doença, e _logos_, tractado. Quer, por tanto, dizer _molestias do casamento_. Balzac escreveu a «_physiologia_»; outro, que me não vem á memoria, escreveu «_anatomia do coração_»; faltava uma «_pathologia_» que apparece agora, e, mais tarde, se me não faltar a vista intellectual, que já sinto muito cançada, escreverei a «_Pharmacia do casamento_» que hei-de dedicar a uma outra D. Fulana, que eu cá sei. V. exc.^a é uma senhora fina, que, além de ter a cabeça no seu lugar, apresenta muitas vezes lume no olho. Sympathiso com o seu talento, e talvez casasse com a snr.^a D. Fulana, se tivesse a certeza de podermos entreter o nosso tempo traduzindo os trinta e sete livros de Plinio, e os trinta e cinco _De Linguâ Latinâ_ de Terencio Varro, que Deus tem em sua santa gloria. Penso que v. exc.^a não estaria por isto. O seu espirito tem calefrios de enthusiasmo, e eu, a fallar-lhe a verdade na sua nudez patriarchal, devo dizer-lhe que tenho dentro do peito uma mumia, que poderia valer alguma cousa nas ruinas de Memphis, mas não vale nada no cavername ossudo d'este seu creado. Eu preciso d'uma mulher d'oculos, e pitada constante nos dedos. Quero que ella me falle dos Heraclidas, das Saturnaes de Macrobio, de Creta e de Lacedemonia, da Beocia e Epaminondas. Eu não sei se v. exc.^a sabe alguma cousa d'isto; mas desconfio que não. Falla-me muito em Victor Hugo, e na _Petite Fadete_ de George Sand. Já a encontrei a lêr _les Liaisons Dangereuses_, e a _Manon Lescaut_. Palpita-me que a snr.^a D. Fulana tem na cabeça muita somma de têas de aranha, e não serei eu a vassoura da limpeza. Não obstante, respeito-a, admiro-a até ao ponto de lhe offerecer a minha «_Pathologia do Casamento_.» Digne-se v. exc.^a acolhel-a no regaço da sua benevolencia, e dê-me occasiões de mostrar-lhe que sou De v. exc.^a o ultimo creado, e o primeiro dos seus admiradores, _Camillo Castello Branco_. PERSONAGENS. D. Leocadia 18 annos. D. Julia 20 » A Viscondessa de Valbom 45 » Jorge da Silveira 30 » Alvaro de Castro 32 » Eduardo Leite 30 » O Visconde de Valbom 50 » _Damas, cavalheiros, e creados_. (Podem ter a idade que quizerem). A scena dizem que se passou no Porto; mas o author não impõe, Mafoma dramatico, a crença a ninguem. Cada qual fique no que lhe parecer; mas, se, effectivamente, os personagens existem, tenham paciencia. PATHOLOGIA DO CASAMENTO. ACTO I. DECORAÇÃO. _Uma saleta contigua a um salão de baile, separada por largas portadas de vidro, através das quaes se vêem perpassar, em passeio, damas e cavalheiros_. SCENA I. Julia, _e_ Leocadia, _entrando, como fatigadas, sentam-se n'um sophá._ Julia _tira da cabeça uma grinalda de flôres brancas, que arremessa com desdem sobre o sophá_. Julia.--Afflige-me tudo!... Tomára-me eu na minha liberdade, Leocadia! Não goso nada... Tanta luz parece um insulto á escuridão da minha alma... Queria-me sosinha... Leocadia.--Não tens paciencia nenhuma, Julia!... Que é o que te afflige assim? Julia.--Que é!... É aquelle homem... Sempre aquelle homem!... não ha nada que o desengane... Leocadia.--Nem as palavras?! Julia.--Eu sei!... nem as palavras, talvez... Leocadia.--Porque não és franca?! Eu, de mim, na tua posição, tinha-lhe dito: «não me persiga!» É o que eu já disse a Eduardo... Julia.--Eu não sei dizer isso... Acho que é aviltar demasiadamente um homem... Pois tão estupido é elle, que precisa uma franqueza tão impropria d'uma senhora? Tenho feito tudo que póde desenganar um homem... Teima, persegue-me, flagella-me... é insupportavel!... Ainda ha pouco, entre mim e Jorge... Leocadia (_sobresaltada_).--E Jorge!... Julia.--Que modo é esse!? Jorge interessa-te!? Leocadia.--E a ti? Julia.--A mim?... Pois não sabes... Leocadia.--O que?... não sabia... Elle ama-te? Julia.--Tem-m'o dito... Leocadia.--Elle!... tem t'o dito... Jorge!... Julia.--E tambem a ti?... Falla depressa... Leocadia (_contrafeita_).--Não... a mim... não... mas a ti... sim? Julia.--Penso que sim... mas esse descorar... Leocadia!... Leocadia.--Fui eu que me enganei... Pensava... Julia.--Talvez te não enganasses... Que te disse elle? Leocadia.--Nada... Vamos nós á sala?... Julia.--Já?!... Eu não vou já... Vai tu, se queres... Leocadia.--Que é o que me querias dizer?... Disseste que entre ti e Jorge... Julia.--Estava uma cadeira de vago... Alvaro vinha occupal-a, e eu ergui-me de repente, e occupei-a primeiro... Leocadia.--E Alvaro... nem assim... Julia.--Me comprehendeu... Sentou-se na immediata, e disse não sei que frioleira... Leocadia.--Se tu és tão amavel!... Julia.--Ai!... tu queres imital-o?! É o que elle me diz cem vezes em cada baile... Leocadia.--Uma verdade, por muito repetida, nunca perde o merecimento... Julia.--Que maneira de fallar!... Quem me dera adivinhar-te! Tu amas Jorge!... Leocadia.--Não, menina... Eu não amo ninguem... Julia.--Ninguem?! nem a tua Julia? Leocadia.--A minha Julia não póde repartir o seu coração... Não quero entrar em partilha com Jorge... O peor quinhão seria para mim, porque não ha nada superior a elle... Ficas? Julia.--Fico a scismar... Vem cá, Leocadia... sê franca, senão... não sou tua amiga... Jorge será um impostor?... Leocadia.--Perguntasm'o a mim!? Eu não sei... Julia.--Terá tido a mesma linguagem para ambas? Leocadia.--Disse que te amava?... A mim... não me disse nada... Julia.--Então és tu que o amas? Leocadia.--Não... Olha, minha amiga, faz de conta que eu ouvi com perfeita indifferença a tua revelação... Até logo... Ai!... diz-me cá... O teu namoro é antigo... ou começou aqui? Julia.--Com Jorge? É muito moderno... Tem um mez... É uma creança, mas já foi baptisado com lagrimas... Leocadia.--Já? Pois afaga-o muito na alma... Sê muito feliz.... que eu, se te não felicitei mais cedo, é porque o não sabia... Vou lá dentro... Minha mãi deve reparar n'esta ausencia... Julia.--Não me deixes agora que ahi vem Alvaro... É insupportavel! Leocadia.--Ora!... que mal te faz o homem?!... Eu volto já... Olha... diz-lhe que amas Jorge... é impossivel que elle queira sustentar a competencia... (_Sahe_). SCENA II. Julia _e_ Alvaro. Alvaro.--Está incommodada, snr.^a D. Julia? Julia.--Não, senhor. Alvaro.--Então está aborrecida... Julia.--De certo... Alvaro.--Menos, quando ao seu lado um certo cavalheiro de luneta... Julia.--Ah! o senhor vem pedir-me satisfações? É engraçada a liberdade!... Alvaro.--Não lhe peço satisfações... Se as minhas palavras foram indiscretas, seja generosa, perdoando-m'as. Julia.--Muitos perdões me tem pedido, snr. Alvaro!... A minha generosidade com v. s.^a chega já a parecer-se... Alvaro.--Com a virtude d'uma santa? Julia.--Não queria dizer isso... Alvaro.--Queria dizer que chega a parecer-se... Julia.--Com um excesso de imbecil paciencia. Alvaro.--Isso é muito forte!... Eu não lhe mereço tanto! Nunca lhe disse affrontas... Julia.--Com que direito ha-de dizerm'as? Alvaro.--Não tenho nenhum? absolutamente nenhum? Julia.--De certo, nenhum... Alvaro.--A paixão cega o entendimento... Julia.--Não é minha a culpa... Alvaro.--É toda... Julia.--Toda?... pois eu authorisei-o? Disse-lhe alguma vez que o amava? Alvaro.--Nunca m'o disse... porque... Julia.--Porque o não sentia... Que mais lhe posso dizer agora? Alvaro.--Depois d'isso, mais nada. (_Retira-se_). Julia.--Foi preciso isto... Ainda bem!... (_Ouve-se a musica d'uma polka_. _Julia enfeita-se ao espelho com a grinalda, e sahe_). SCENA III. Jorge _e_ Eduardo. Jorge.--Tu vaes ser verdadeiro, Eduardo? Eduardo.--Como Epaminondas Thebano, que nem zombando mentia. Não me lembra d'outro estafermo antigo que fallasse verdade... Jorge.--Tu tens algumas intelligencias com Leocadia? Eduardo.--Diz-me cá, Jorge, póde fumar-se aqui? Jorge.--Não... se queres vamos á sala debaixo... Eduardo.--Não posso, que tenho a sexta quadrilha com Leocadia... Diz lá o que queres... Jorge.--Perguntei-te se amavas Leocadia. Eduardo.--Gosto muito d'ella... Depois d'um bom charuto, é o meu sonho dourado. Jorge.--E ella... Eduardo.--Gosta de mim? não sei bem ainda... Perguntei-lh'o ainda agora pela vigesima vez... Disse-me que sim, e é a primeira vez que m'o diz... Se mente, lá se avenha com a sua consciencia... Jorge.--E é a primeira vez que te disse que sim? Eduardo.--A primeira, palavra d'honra, Jorge! Jorge.--E que conclues d'ahi? Eduardo.--Concluo que não gostou até hoje. Jorge.--E não conclues mais nada? Eduardo.--Nem quero. Jorge.--Não suppões que ella amasse, até este momento, outro homem? Eduardo.--Não só supponho; mas até acredito... Nada de emboscadas... Essa diplomacia parece-me uma velhacaria rançosa... Sei que amas Leocadia, ou, se a não amas, que a amaste já... Eu não tenho nada com o passado, nem com o futuro... A minha grande questão é a actualidade. São arrufos? Deixal-os ser: aqui estou eu para encher as lacunas, e tenho n'isso muita honra... Nunca me importou saber que tentos lavravas no coração da pequena. Vi-te fazer de Cesar, e eu fiz de Fabio. Agora, cada um de nós segue o seu systema... E até logo... Acho que não te queres bater... Jorge.--Eu não me bato por estimulos tão pouco despertadores do brio... Eduardo.--Fazes tu muito bem... Eu tambem zango de duellos, principalmente por causa de mulheres... que comem _sandwichs_, e bebem limonadas... Falla-me logo... (_Sahe_). SCENA IV. Jorge _e depois_ Julia. Jorge.--Eu tinha previsto tudo... Era necessario renunciar uma das duas... Julia.--Procurava-o... Jorge.--Sim?... que é, Julia? Julia.--Diga-me: poderei confiar a Leocadia o segredo do nosso amor?... Vacilla?... responda!... Jorge.--Tem precisão de confidentes? Julia (_sorrindo_).--Tenho, porque me não cabe a felicidade no coração... Posso?... Jorge.--E é forçoso que seja Leocadia?! Julia.--É... preferi-a entre todas as minhas amigas... Que embaraços são esses?! Jorge.--Entendo que não deve revelar a ninguem o nosso amor. Julia.--Sim?... porque m'o não disse?... Já agora, perdeu-se a sua discrição... Eu disse tudo... Jorge.--A quem? Julia.--A Leocadia... Jorge (_á parte_).--Está explicado o enigma!... Julia.--Nada de monologos... falle comigo... Ora, snr. Jorge... que necessidade tinhamos nós de corarmos um na presença do outro!? Jorge.--Eu não córo... A côr d'este rosto só póde alteral-a uma infamia. Julia.--Dê o nome que lhe aprouver ao seu acto, que eu não lhe conheço outro... V. s.^a feriu-me, e cicatrizou-me a ferida... São boas todas as affrontas que nos despertam a sensibilidade da honra... A lembrança do ultraje ha-de fazer que eu esqueça a causa depressa... Fez bem... Deixou cahir a mascara muito a tempo... (_Retira-se_). Jorge.--Escute-me, Julia... (_Vai sentar-se no sophá_). SCENA V. Jorge, _e_ Eduardo, _dando o braço a_ Leocadia. Eduardo.--Será isto um sonho?... Se o é, deixe-me sonhar uma hora, sim? Leocadia (_sorrindo_).--Tambem ha sonhos de que se acorda com a face cheia de lagrimas... Eduardo (_para Jorge_).--Ainda aqui!... (_Leocadia estremece_). Jorge.--Ainda aqui... não estou mal... Tem dançado muito, minha senhora? Leocadia.--Principiei agora... Jorge.--Pois ainda tem muito tempo de gosar... São tres horas... Nunca lhe esqueça que foi ás tres horas... Leocadia.--Não o comprehendo, snr. Jorge... Que tenho eu com as tres horas do seu relogio? Jorge.--Não se finja simples como donzellinha que sahiu hontem do collegio... Leocadia.--Antes uma fingida innocencia que uma descarada impostura. Jorge.--Não entendo. Eduardo.--Os senhores dizem que não se entendem, e eu de certo não os entendo melhor. Não façam ceremonia de mim. Queiram explicar-se de modo que eu possa reconcilial-os. Jorge.--Reconciliar-nos!... Não estamos divorciados... O que me prende a esta senhora são os respeitos e considerações que se lhe devem. Em quanto ella se não desviar da carreira d'um nobre procedimento, as nossas relações não soffrem quebra... Eduardo.--Pois n'esse caso, meu caro Jorge, serás sempre o respeitador d'esta senhora, porque os anjos não se precipitam desde que um, ha muitos annos, teve o mau gosto de se precipitar do céo. Jorge (_sorrindo_).--Snr.^a D. Leocadia...... snr.^a D. Leocadia!... (_Retira-se_). SCENA VI. Eduardo _e_ Leocadia. Eduardo.--Fallemos seriamente, minha senhora. V. exc.^a n'um momento de ciume, dignou-se empregar-me no seu serviço como instrumento de barro, que se quebra, feito o serviço, não é verdade? Ora ande lá... não perca o animo, supposto que o escarlate do pejo não lhe fica mal... acho-a muito mais bella... Parece-me que adivinho o segredo... V. exc.^a encontrou em flagrante delicto de ternura o sensivel Jorge com a sensivel Julia... Ferida na sua vaidade, quer vingar-se, e eu represento n'este negocio o _tertius_ sem o _gaudet_. Perdoará o latim... quiz dizer que represento n'este negocio uma triste figura... Já não é a primeira vez... Não se inquiete, que eu tambem me não incommodo... Tire de mim o partido que quizer... Leocadia.--Snr. Eduardo... não devia fallar-me assim... Essas palavras são tão repassadas de ironia... Eduardo.--É o meu genio... Sou um Democrito pequenino, porque tambem são ridiculamente pequenas as cousas que me fazem rir... Ahi vem uma que me arranca do profundo da consciencia uma legitima gargalhada. Leocadia.--Que é? Eduardo.--É a sua amiga Julia pelo braço de Alvaro, em intima conversação... Não acha tudo isto tão comico? SCENA VII. Leocadia, Eduardo, Julia _e_ Alvaro. Eduardo (_para Alvaro, sorrindo_).--Os reis da noite somos nós, snr. Alvaro... Logo despimos a purpura de reis de comedia, e fumamos um pessimo cigarro do contracto... Alvaro.--Não entendo a finura do epigramma. Eduardo.--Então, é mais feliz do que eu suppunha... Póde contar com o reino do céo... Deveras não entende? Alvaro.--Não, e dispenso as explicações officiosas do meu amigo... Eduardo (_rindo_).--Espero que á solemnidade do estilo, se não siga um cartel de desafio... Leocadia.--Que linguagem!... É bem galhofeiro o seu caracter, snr. Eduardo! Eduardo.--Muito galhofeiro, minha rica senhora... E alli o do meu amigo é sombrio como o d'um encapotado de drama em cinco actos. Alvaro.--A verdade é que nos não parecemos... Eduardo.--Felizmente para o senhor ou para mim... Mas na singelesa do coração, na temperatura do amor, ha-de permittir que sejamos parecidos como Pylades com Orestes... Alvaro.--Não temos semelhança nenhuma... Eu não posso brincar com as paixões... Eduardo (_áparte, a Leocadia_).--É da força de trinta Paulos; mas a Virginia que o escuta, só com os olhos, d'aqui a pouco remette-o ao catalogo dos Othellos em quarta mão. (_Alvaro e Julia retiram-se_). Espero que não se baterá comigo, snr. Alvaro... Não respondeu!... Aquelle silencio não quer dizer nada; mas, quem não conhecer o homem, ha-de suppor que a cratera vai rebentar... Quer sentar-se, minha senhora?... Leocadia.--Sim... um momento... Ahi vem Jorge. Eduardo.--Ah!... V. exc.^a estremece!... Muito me ama! (_rindo_). É d'uma ingenuidade mythologica!... SCENA VIII. Leocadia, Eduardo _e_ Jorge. Jorge.--Eduardo, preciso roubar-te um instante a essa senhora... tens a bondade! Eduardo.--Ah! sim... esta senhora não vai de certo queixar-se á policia pelo roubo... Jorge (_a sós_).--Fazes um sacrificio deixando-me cinco minutos com ella? Eduardo.--Sacrificio... nenhum; mas a decencia pede que eu não esteja aqui servindo de sentinella á vista a um teu namoro... Ai!... espera... eu dirijo-me a estas duas almas penadas, que ahi vem... Vou comprimental-as, e tu, como penetrante abutre, desce o vôo sobre a presa... (_Comprimenta duas damas, vestidas de branco, em quanto Jorge vai sentar-se ao lado de Leocadia_). Parecem-me dous anjos, minhas senhoras. São duas virgens de Taurida, que fazem lembrar as alvissimas virtudes de Ephigenia... (_As damas, que elle acompanha, com gaifonas cortezãs, retiram-se sorrindo_). SCENA IX. Jorge _e_ Leocadia. Jorge.--Que caprichos são estes, Leocadia? Leocadia.--Caprichos!... O sentimento d'uma offensa é um capricho?! Jorge.--Qual é a offensa? Uma leviandade de Julia? Leocadia.--A leviandade foi minha, que não quiz imital-a a ella e a muitas, que sabem pisar os homens aos pés antes de lhes darem a mão para que se levantem. Eu dei-lhe a minha alma sem reserva... Fiz do meu amor um sagrado mysterio com medo que m'o profanassem. Violentei-me a olhal-o, em publico, com indifferença, para que ninguem me invejasse. Eram estes os seus conselhos, Jorge... Hoje é que eu comprehendo a horrivel significação d'este plano. O senhor precisava do segredo para agradar a muitas victimas illudidas com um só lance de olhos... Creia que tenho tanta pena de mim como de Julia... Jorge.--Olha, Leocadia... se o meu crime foi grande, a tua vingança excede-o... Não me pareces o anjo resignado que eu imaginei... O que eu acabo de fazer foi uma experiencia na tua alma... O resultado foi infeliz! Nunca previ que consentirias ao teu coração um arrojo vingativo, indigno de ti... Leocadia.--Que fiz eu? Jorge.--Que fizestes tu?... É boa a pergunta!... Procuraste n'esse salão o homem mais desacreditado, o espirito mais corrompido, o cynico mais orgulhoso de o ser, e disseste-lhe que o amavas, sorriste angelicamente ás suas phrases ironicas, e nivelaste-me com elle, apresentando-m'o como rival!... Eu... rival de Eduardo!... Leocadia (_com vivacidade_).--Como rival... nunca! Elle não podia ser seu rival... porque eu não tenho dous corações.... Fui imprudente... confesso que fui; mas não pude mais... a punhalada feriu-me de repente, não me deu tempo de pensar... disse-lhe não sei quê dos labios, mas o coração aborrece-o, porque eu não posso amar alguem com mais virtudes do que tu... pouco me importa que tu sejas tão cynico, tão desmoralisado como Eduardo... Oh! Deus queira que me não ouvissem... Ahi vem Julia... Eu retiro-me... A mãi está com os olhos fixos em mim... (_Menção de sahir_). SCENA X. Alvaro , Julia _e_ Jorge. Julia (_passando por Leocadia_).--Muitos parabens, minha amiga... Leocadia.--De que? Julia.--Transigiste amigavelmente?... Leocadia.--Não sei que dizes... Julia (_ironica_).--Innocentinha... (_Leocadia sahe_. _Passam alguns grupos de homens e senhoras_). Alvaro (_que não vê Jorge_).--Jorge não é homem talhado para o seu coração... Julia.--Falle baixo, que elle está muito perto... Mas não se cale... diga alguma cousa. Alvaro.--É necessario ter o coração puro de amores viciosos para conceber a sublime candura do seu... Julia.--Hei-de morrer sem ser comprehendida... Alvaro.--Não nasceria eu para comprehendêl-a? Julia.--Ai! não... a minha alma é um abysmo, onde se esconde o anjo do bem, e a serpente do mal... Tenho na mesma intensidade transportes d'amor e odio... Alvaro.--Qual lhe mereço?... Julia.--Quer-me sincera? uma verdadeira estima de irmã... Alvaro.--Só? Jorge (_sem erguer-se do sophá_).--Ó snr. Alvaro!... Que tal acha a eloquencia d'esta senhora? Alvaro.--A pergunta é celebre; todavia, responderei: a eloquencia d'esta senhora é excellente... Jorge.--E v. exc.^a, snr.^a D. Julia, que tal acha a eloquencia d'aquelle senhor? Julia.--Eu sou menos generosa que este cavalheiro: não lhe respondo. Jorge.--Responda, responda, que v. exc.^a não é responsavel pelo que diz... Alvaro.--Eu não posso consentir que se affronte assim uma senhora!... SCENA XI. _Os mesmos e_ Eduardo, _que vem passando com uma dama pelo braço, e pára._ Jorge.--Pois senão póde, resigne-se... Alvaro.--Tenho a optar por outro expediente antes da resignação... Eduardo.--Naturalmente quer bater-se... Eu sou de opinião que os meus amigos devem cortar-se reciprocamente os pescoços ás 4 horas da tarde... Jorge (_sorrindo_).--Fecha lá as torneiras ao espirito, Eduardo. Aqui falla-se seriamente... Não vês que aquelle senhor está formalisado? Eduardo.--Pois o senhor está formalisado? e v. exc.^a (_para Julia_) tambem está formalisada? e a menina (_para a que tem no braço_) tambem se formalisa?... Eu de mim, declaro-me formalisado sem saber porque. Formalisem-se todos, desde o dono da casa até ao creado da campainha. Isto deve acabar por hir cada um para sua casa, porque são quasi quatro horas... não acha? Alvaro.--Se me dá licença... Eduardo.--A respeito de licenças, isso não é comigo: é com o dono da casa... Que queria o meu amigo? quer duvidar de que a snr.^a D. Julia é a rainha das mais formosas? (_Com escarneo_). Alvaro.--Snr. Eduardo, as suas zombarias são intempestivas!... Entre cavalheiros é d'uso adoptar-se a linguagem seria e digna d'um salão... Eduardo.--O meu caro senhor está funebre como um mestre de cantochão... Fallou muito bem; mas eu é que não me sinto disposto a manter a reputação de eloquente ás quatro horas da manhã... Se me querem vêr dormir, fallem-me em cousas serias... Diga-me cá... já tomou chocolate? Julia (_desprendendo-se do braço_).--Dê-me licença... Minha mana chama-me... Alvaro.--Eu acompanho-a, minha senhora... (_Vão sahir_). Jorge.--Minha bella menina, estamos quites... D'hoje em diante cada um de nós caminha para o seu polo diverso... Julia.--São indifferentes os seus passos... Caminhe para onde lhe aprouver, snr. Jorge... (_Sahe_). Eduardo.--Disse que caminhasses para onde te approuvesse... Eu de mim vou para casa... Queres vir?... É verdade... que é da transparente creatura, que eu tinha no braço? Evaporou-se?... Deixal-a... (_Atira-se ao sophá_). Ai que somno!... Em que pensas tu?... (_Entra um creado com chavenas de chocolate_). Isso que é? Venha cá... É chocolate... Vm.^{ce} não terá a habilidade de converter isto em vinho do Porto?... Creado.--Não, senhor... Eduardo.--Então vm.^{ce}, pelo que diz na sua, é um grande idiota. (_Toma duas chavenas da bandeja_). Póde retirar-se... Aquelle senhor está fazendo versos... (_O creado sahe_). Ó Jorge, não tens no coração um reservatorio onde caiba uma chavena de excellente chocolate? Jorge.--Adeus... retiro-me... Eduardo.--Alto lá!... Eu preciso saber em que lei devo viver... Reconsideraste a respeito de Leocadia? Quem é que a ama, sou eu, ou és tu? Jorge.--Fallas d'ella com tão pouco respeito!... Eduardo.--De quem? de s. exc.^a!?... Pois eu disse alguma cousa que possa chamar-se grosseira? Jorge.--Leocadia não é uma apolice que se passe com o mesmo valor de mão em mão... Eduardo.--Justamente o peor que ella tem é não ser apolice, nem ao menos acção da empreza do caminho de ferro de leste... Jorge.--Estás estragado!... Eduardo.--Do estomago? Palavra d'honra que sim! As taes sandwichs são indigestas como um artigo de fundo... Mas do espirito estou optimo... Ella ahi vem... Queres ficar só com ella?... Eu vou entreter Julia... Que mais queres da minha docilidade? Um homem que faz isto não está de todo estragado... SCENA XII. Jorge _e_ Leocadia. Leocadia.--Vou sahir, Jorge... Dê-me uma só palavra, que me salve... Jorge.--Que queres que eu te diga, Leocadia?... Ámanhã vou consultar a vontade de teu pai... Queres assim tão breve o desenlace das tuas affeições? Leocadia.--É muita felicidade, meu Deus. Eu não merecia tanto... E Julia!... Coitadinha!... quanto não soffrerá ella!... Jorge.--Que tenho eu com Julia!... Poderia amal-a com a paixão violenta d'uma febre... mas estimal-a com a serena amisade que te dedico, Leocadia, isso nunca... Leocadia (_reparando_).--Ai!... minha mãi... não me deixa um instante... Adeus... SCENA XIII. _Os mesmos e_ Julia, _e depois_, Eduardo _e_ Alvaro. Julia.--Espera, menina (_para Leocadia que se retira_)... São só duas palavras... Snr Jorge... V. s.^a, não é digno d'ella, nem de mim, que valho menos que ella... Não te felicito pela reconciliação, minha querida amiga... D'este a Eduardo, que a sociedade chama cynico, não vai distancia que tu não vejas desapparecer vinte e quatro horas depois de casada... São tudo Eduardos... Eduardo.--Que é isso de Eduardos? Ainda falta este... Trata-se de levar ao capitolio os Eduardos, minha senhora? N'esse caso peço que não sejam exceptuados os Alvaros. (_Para Alvaro que entra_). Venha cá, meu amigo... Á vista d'este quadro, confesse que fizemos tristissimas figuras... Aquelle senhor (_apontando Jorge_) fez monopolio de dous corações, que nós tivemos o imbecil heroismo de conquistar ás tres horas da noite... Sabe que mais? Olhemos para ellas, e digamos como a raposa: «Estão verdes!» Pois não convém n'isto? Vozes dentro.--Vamos meninas! São quatro horas. Eduardo.--Nenhum dos senhores se quer bater pelo que vejo!... Boas noites... Minhas senhoras... Vozes.--O ultimo _cotillon_, o ultimo. Eduardo (_para a viscondessa de Valbom que entra_).--O ultimo _cotillon_, minha senhora, se não tem par... (_Retiram-se todos os outros_). Viscondessa.--Eu não danço senão quadrilhas. Eduardo.--Faz v. exc.^a muito bem... Tem dançado muitas? Viscondessa.--_Un peu_... _un peu_. Eduardo.--Ah! V. exc.^a falla francez! Ha quantos annos aprendeu, minha amavel senhora? Antigamente ensinava-se um francez muito solido... Hoje é tudo pela superficie... Viscondessa.--É verdade; mas as bases d'uma verdadeira instrucção são os solidos rudimentos. Eduardo.--Muito bem, minha senhora... O seu coração deve ser tão sensivel como a sua cabeça é illustrada. Viscondessa.--O meu coração está morto. Eduardo.--Deveras!... Quem fará o milagre de o chamar á vida?... Eu de certo não ousaria tão difficil empresa... Viscondessa.--V. s.^a zomba?... Eduardo.--Não zombo, porque não sei zombar com o amor... Viscondessa.--Falle baixo que ahi vem meu marido... Eduardo (_para o marido que entra_).--Snr. visconde!... estavamos fallando na guerra da Crimea. Visconde.--Vai por lá o diabo... Eu acho que os alliados não mettem o nariz em Sebastopol. Viscondessa.--Pelo menos em quanto a Austria e Prussia não expedirem forças que suppram a mortandade dos inglezes... Visconde.--E que me diz o senhor á exportação dos bois? Cessa ou não cessa? Eduardo.--A respeito de bois, não sei nada... (_reparando para fóra_) Ahi vem tudo... Que é isto!... uma senhora desmaiada? SCENA XIV. _Os mesmos, e_ Julia _desmaiada nos braços de algumas damas._ Vozes.--Que seria? Coitadinha... Tragam agua... Eduardo.--Fumo de charuto não é mau... Visconde.--Faz favor de lhe botar um pouco de fumo pelas ventas?... Eduardo (_accendendo o charuto_).--Lá vou... lá vou, snr. visconde. Vozes.--Não é preciso... Julia.--É Jorge!... Jorge é o responsavel da minha vida... Vozes.--Ah!... Eduardo.--É uma maneira bonita de terminar um acto! Está tudo com a bocca aberta... e eu tambem! (_Abrindo a bocca_). CORRE O PANO. ACTO II. _A scena é na Foz, justamente na praia dos Inglezes. Senhoras e homens tomando banhos; outros, entrando nas barracas, horrivelmente desfigurados, ou, antes, taes quaes a natureza os fez. Sobre os penedos, pinhas de povo que pasmam diante dos ensaios do salva-vidas. Estes podem dizer o que quizerem a tal respeito. O author dá carta branca ao actor para que diga centenares de parvoices: póde até discorrer sobre o dropp se lhe aprouver; mas o melhor é calar-se_. SCENA I. _Afóra estes entes nullos_, Jorge _e_ Leocadia _sentados em cadeiras_. Leocadia (_fazendo SS com o guarda-sol na areia_).--Estás tão sombrio, Jorge! Jorge (_fazendo TT na areia com a chibata_).--Estou optimamente. (_Ouvem-se guinchos muito sympathicos das senhoras, que patinham no banho_. _Alguns homens urram_). Leocadia.--Parece que te aborrece a Foz!... Jorge.--Nada me aborrece... Estou bem em toda a parte... Leocadia.--Niguem o ha-de dizer... Todas as minhas amigas me perguntam o que tens... Jorge.--Diz-lhes que se não incommodem... Leocadia.--Hão-de suppor que a tua amisade para comigo foi uma illusão desvanecida pelo casamento... Jorge.--A opinião é livre... Supponham o que quizerem. Leocadia.--Mas não consideras que eu soffro muito se ellas imaginam tal? Jorge.--Não me lembrava essa especie... Isso é amor proprio... Leocadia.--Não é amor proprio... é _dôr_ do coração... Jorge.--Será algum aneurisma? Leocadia.--É uma zombaria bem cruel!... Estranho-te, Jorge. Jorge.--Tambem eu me estranho... Não achas que é melhor estarmos calados? Leocadia.--Calar-me-hei... Jorge.--E fazes bem... Estes dialogos terminam sempre mal... A necessidade da variar a conversação é a tisica das grandes paixões... Uma phrase repetida aborrece, por mais bonita que seja... Nós podiamos ter sempre cousas novas a dizer, se não tivessemos gastado a inspiração em quatro mezes de casados. Dissemos tudo... definimos tudo que nos rodeava, e agora sentimos a dura necessidade de nos definirmos a nós... É onde está o mal.... Tu queres que eu te repita o que te disse ha cinco mezes, e eu zango de repetições... Não sei fazer phrases como tu fazes punhos de camizas... Exhauri-me... Agora é necessario esperar uma nova colheita do terreno que já deu fructo. Essas lagrimas vem muito a proposito... (_Erguendo-se e espreguiçando-se_). Ai! que vida!... (_Reparando_). Olá, Eduardo!... por cá? SCENA II. _Os mesmos, e_ Eduardo. Eduardo.--É verdade... Como passou, minha senhora? Leocadia (_disfarçando as lagrimas_).--Muito bem... agradecida... Está bom? Eduardo.--Como sempre... Tenho uma saude insupportavel!... Não sou capaz de arranjar uma dôr de cabeça, para me dar certos ares romanticos. Vejo por ahi muitos mancebos, alquebrados no frescor da vida, e, em quanto a mim, são infelizes creaturas que soffrem dos callos... Já tomou banho, minha senhora? Leocadia.--Não tomo banho hoje. Constipei-me hontem. Eduardo (_para Jorge_).--E tu? Jorge.--Vou tractar d'isso... Ficas por aqui? Eduardo.--Vamos nós conversar, minha senhora... Eu hoje sinto-me com disposição para dizer cousas muito philosophicas... (_Jorge sahe_). SCENA III. Leocadia _e_ Eduardo. Leocadia.--V. s.^a tem sempre um humor tão alegre... Eduardo.--Será isto idiotismo? Já me lembrou se eu seria tão doudo como por ahi me julgam! Leocadia.--Quem o julga doudo?! Eduardo.--É toda essa sociedade... Leocadia.--Doudo... não!... Dizem que v. s.^a não tem persistencia em cousa nenhuma; e escarnece tudo... Eduardo.--Em quanto á persistencia, é falso o que dizem, minha senhora, e sinto que v. exc.^a, tão distincta do commum, queira ser o ecco das opiniões vulgares da rançosa sociedade... Não sou inconstante... Leocadia.--A quem diz isso? Pois não sei eu a sua vida!... Só namoros, tenho-lhe conhecido cincoenta. Eduardo.--Serão mais, talvez; mas... que namoros!... V. exc.^a não se recorda de que foi meu namoro vinte minutos no baile do barão de Valbom? (_Leocadia abaixa os olhos_). Pois os taes cincoenta namoros foram todos assim... Não sou constante, porque não encontrei ainda uma mulher, que possa adorar-se seriamente. Não ha paixão que o ridiculo não mate. As minhas tem todas soffrido morte de gargalhada. Leocadia.--Pois não amou nunca seriamente? Eduardo.--Eu lhe digo, minha senhora... amei... Vou contar-lhe a minha vida; mas só lhe digo os argumentos dos capitulos que são tres. _Capitulo_ 1.^o Conta-se que Eduardo Leite amou diabolicamente uma mulher, aos dezeseis annos, e fez tantas loucuras por ella, que, não tendo mais que fazer, quiz suicidar-se com pós dos ratos, e foi uma tia que lhe valeu com um copo de azeite... Pois v. exc.^a ri-se das minhas desgraças!... E eu suppunha que a fazia chorar!... Estou como certo dramaturgo que endoudeceu porque a platéa se riu justamente no pedaço mais triste da tragedia!... Leocadia.--É que v. s.^a dá um colorido comico ás scenas mais tristes... Eduardo.--_Capitulo_ 2.^o No qual se diz que o dito Eduardo Leite fez tristissima figura, vociferando injurias contra as mulheres, emmagrecendo na razão inversa da hydropesia do scepticismo, e passeando de noite nas Fontainhas, perguntando ás estrellas pela mulher dos seus sonhos, e bebendo agua no chafariz para refrigerar o vulcão, que lhe queimava as entranhas. Dizem-se outras muitas cousas tristes a este respeito, como por exemplo um duello que elle teve com o seu rival, de que lhe resultou estar quinze dias de cama, com uma bala mettida n'um hombro. Que lhe parece o segundo capitulo? Leocadia (_sorrindo_).--É funebre; mas faz-lhe muita honra... Eduardo.--Estou por isso... É uma honra muito grande... Leocadia.--Pois não é? ser ferido em duello por causa d'uma senhora!... Quem seria a ditosa? Eduardo.--Era a filha do meu sapateiro, minha senhora... Leocadia (_com seriedade_).--Não diga tal... V. s.^a não se fascinava por tal mulher!... Eduardo.--Pois fascinei-me... Era linda como a edição mais nitida, que sahiu da typographia celeste. Nos seus olhos espelhava-se a candura, e dos labios fugiam-lhe espiritos d'azas scintillantes, como não vi em nenhuns, excepto nos de v. exc.^a... Leocadia.--Dispenso a comparação... Eduardo.--E faz bem, minha senhora!... Ella por fim, cahiu do ministerio a que eu a levantei, e tornou-se uma gorda matrona casada com um gordo bate-folha, que é a minha vergonha porque teve a petulancia de luctar comigo, e vencer-me... Leocadia.--E foi esse que teve o duello com v. s.^a? Eduardo.--Nada... foi uma segunda victima, que ainda hoje faz quadras a uma certa visão que lhe appareceu no amanhecer da vida... E esta visão é a sobredita filha do meu sapateiro... Leocadia.--A sua vida é um poema epico... E o terceiro capitulo? Eduardo.--É verdade, o terceiro capitulo... O terceiro capitulo... é isto... É este riso, esta zombaria, esta conscienciosa abnegação de mim mesmo... é a resignada docilidade com que me prestei a ser o instrumento de v. exc.^a para ferir a vaidade de seu marido... Queira desculpar-me... Entristeci-a? O passado, passado... Quer v. exc.^a que eu lhe escolha duas conchinhas? (_Procurando na areia_). Aqui está uma bem bonita... (_Reparando_). Ahi vem a sua amiga Julia... Leocadia (_sobresaltada_).--Ai!... vem?... Eduardo.--Como se dá ella com o marido, sabe dizer-me? Leocadia.--Não sei.. penso que não é feliz... SCENA IV. Leocadia, Julia, _e_ Eduardo. Julia.--Snr. Eduardo, se me concedesse alguns instantes com a minha amiga... Eduardo.--Pois não, minha senhora... (_Sahe_). Julia.--São só duas palavras... Vi entrar teu marido para a barraca, e não nos vê... Leocadia... Eu não sou mais feliz que tu... Jorge fez-nos desgraçadas a ambas... Tu sabes que o meu casamento com Alvaro foi um capricho que tenho sustentado com lagrimas... Mas tu não tens culpa... Sei que não és amada... Eu tambem o não seria... Sou ainda tua amiga... Não poderei prestar-me nunca a ser o cutello na mão do teu algoz... ahi tens essas cartas. Leocadia.--Que cartas são estas?! Julia.--São cartas, que teu marido me escreve... Leocadia.--Meu marido!... Julia.--Sim... mais nada... adeus... (_Sahe_). SCENA V. Leocadia, _e depois_ Eduardo. Leocadia.--Vou sondando toda a profundidade do meu abysmo... Eu bem sabia que era infeliz; mas tanto... não!... Eduardo.--Parece-me que a sua amiga não veio dar-lhe prazer... Tão descorada, minha senhora! Que tem? Leocadia.--Nada, snr. Eduardo... É uma nuvem passageira... Queira dizer a Jorge que me retirei... Eduardo.--Eu acompanho-a... Leocadia.--Não consinto... a minha casa é alli... Eduardo.--Não insto, minha senhora, para não ser importuno... (_Ella sahe, cortejando-o_). SCENA VI. Eduardo, _e depois a_ Viscondessa de Valbom, _com um creado de farda, que conduz em sacco de damasco vermelho a roupa de banho_. Eduardo (_accendendo um charuto_).--Ora aqui está o que são os môços honestos, honrados, e bem comportados!... São estes dous maridos. Jorge passa por um mancebo exemplar; Alvaro dizem que é o typo da bondade; e, comtudo, vou descobrindo que as respectivas mulheres, se escrevessem jornaes, estavam em opposição com os maridos. Os honrados são elles... Eu é que sou o cynico!... Esta sociedade é uma grande patacuada!... Ahi vem a viscondessa de Valbom. Não me larga desde aquelle baile... (_Olhando sobre o hombro_). Ella cá está comigo... (_Erguendo-se_). Minha querida senhora viscondessa, como passou v. exc.^a desde hontem? Viscondessa.--_Passablement_. Esperei-o á noite para a partidinha, e o maganão não nos quiz honrar com a sua visita... Eduardo.--Urgentes negocios obrigaram-me a hir ao Porto. Viscondessa.--Namôro... diga a verdade... namôro... Eduardo.--Não, minha senhora. O meu coração está desde muito na terceira secção... Não ha poder que o faça entrar na effectividade... Viscondessa.--Ora deixe-se d'isso... Eu sei que ama... e ama uma senhora... que... digo? Eduardo.--Se lhe apraz... Viscondessa.--Não direi; mas... lembre-se de que _la proprieté n'est pas un vol_ como diz Proudhon... Eduardo.--Eu acredito que a propriedade não seja um roubo, e por isso mesmo não tento contra ella. Viscondessa.--Tenta, tenta... Isso não é bonito... Se quer merecer a minha estima, não tente partir os vinculos matrimoniaes de... eu bem sei... Eduardo.--E v. exc.^a acha que sou indigno da sua estima, se tentar... Viscondessa.--Pois não? Ha cousa mais sagrada sobre a terra?! A reputação d'uma senhora!... (_Mudando de tom_). É verdade que muitas vezes toda a philosophia é pouca para conter os impetos do coração... (_Mudando para o tom da honestidade_). Ainda assim, a mulher digna reprime-se, e faz-se superior a si propria... (_Mudando de tom_). Apesar d'isso, eu absolvo alguns erros, que muitas infelizes commettem, porque tem a imprudencia de tentar com a ponta do pé o desfiladeiro, e por fim... Eduardo.--Escorregam... Viscondessa.--Justamente... Eduardo.--E n'esse caso... Viscondessa.--Está a pessoa de quem fallamos... Eduardo.--Nós não fallamos de pessoa nenhuma... Queria eu dizer que n'esse caso não está de certo v. exc.^a Viscondessa.--Quem sabe!... (_Á parte_). Ai! o que eu fui dizer!... Eduardo.--Sei-o eu porque a conheço desde menino, sempre esposa exemplar... Viscondessa.--Desde menino, não!... pois que annos tem v. s.^a?... Eduardo.--Trinta, minha senhora. Viscondessa.--Trinta?!... Ha-de ser isso... Não levamos grande differença... Eduardo.--Queira perdoar-me, minha senhora, mas eu andava na escóla, quando v. exc.^a deu um baile para celebrar os annos de seu filho, que era meu condiscipulo... Ha quantos annos isto vai! Viscondessa (_enfronhada_).--Dê-me licença que vá ao meu banho... São horas, e a maré principia a vasar... Eduardo.--Vasa, vasa, minha senhora... Será bom aproveitar a vasante... Viscondessa (_á parte_).--É muito grosseiro!... Eduardo.--Vai a resfolegar polvora pelos narizes... D'esta vez, creio que aboli este vinculo de nova especie!... Ahi está um dos taes cincoenta namoros de que falla Leocadia... E é por causa d'estas... que me chamam inconstante!... Que pessimo charuto!... Gilbert se vivesse n'este tempo suicidava-se com um d'estes canudos de acido prussico... SCENA VII. Eduardo _e_ Jorge. Jorge.--Leocadia? Eduardo.--Já lá vai... Disse que hia para casa. Jorge.--Dá-me lume... (_accende o charuto_). Quero dar-te um conselho, Eduardo... Eduardo.--Sim?! Jorge.--Não te cases. Eduardo (_Alvaro, sem ser visto, entra n'uma das proximas barracas_).--Deus me livre... Sendo eu, como realmente sou um cynico, pobre da mulher que tivesse de luctar com o meu cynismo!... O casamento é bom para ti que és um anjo de virtude, e para Alvaro que é o typo da sisudez... Diz-me cá, és muito feliz, não és? Jorge.--Não. Estou cançado... Minha mulher... é uma mulher... Eduardo.--É _uma_ mulher? Pois louva a Deus por não serem duas... Quantas querias tu? Aposto que estás desmoralisado como um turco?! Jorge.--Sempre galhofeiro... Agora serio... Tu que és homem de expedientes, não me dizes como eu possa ser feliz com Leocadia? Eduardo (_ironicamente_).--Estás a zombar! Pois o anjo de virtude vem consultar o cynico!? Não abuses da tua superioridade, Jorge... Jorge.--Se tu soubesses que tormentos aqui vão n'esta alma!... A paixão allucinada que me abriu o inferno no coração!... Tenho necessidade de respirar... Quero que tu me ouças, porque não és d'esses tartufos que torcem o nariz á menor expansão d'um espirito atormentado!... Sabes que amo até ao delirio uma mulher? Eduardo.--É a tua naturalmente... Isso é muito justo... Jorge.--Não é a minha... Eduardo.--Pois a minha tambem não... Jorge.--Não motejes a minha dôr... Se me não queres ouvir com seriedade, calemo-nos... Eduardo.--Ora diz... Jorge.--Eu amo... Julia... Eduardo.--A mulher de... Oh escandalo!... Falla baixo que te não ouçam os caranguejos... Jorge.--Não soffro o escarneo... És incapaz de comprehender um sentimento nobre... Eduardo (_rindo_).--Sim... esse sentimento é muito nobre... Eu é que sou o cynico... Tens razão... estou estragado a ponto de não comprehender a nobreza d'esse sentimento... Prega essa moral, verás o galardão que recebes... Jorge.--Não me importa a sociedade... Perco-me por aquella mulher... Era ella quem eu amava... Casei com Leocadia por um capricho... mas a mulher do meu coração era Julia... Eduardo.--E ella... concorda? Jorge.--Não... despresa-me... recebe as minhas cartas, e não me responde... Eduardo.--Mas sempre vai lendo as cartas?... Então continúa, visto que esse sentimento é nobre... Eu é que sou o cynico... Jorge.--E quem sabe o fim para que ella recebe as cartas? Eduardo.--Talvez para papelotes, quando se frisa... Jorge.--Adeus!... estás insoffrivel... Isso offende!... Eduardo.--Pois eu sei cá para que ella recebe as cartas? Jorge.--Talvez para mostral-as a minha mulher... e vingar-se assim... Eduardo.--Isso póde ser... A historia antiga conta tres factos semelhantes. O primeiro aconteceu com Dido, a respeito de Eneas; o segundo com Fredegonda... Jorge.--Deixa lá isso... que me importa a mim a historia?... Fazes-me um favor?... Se fallas com ella, pódes sondal-a a meu respeito... Eduardo.--Sondal-a?... não sei de que modo!... Tu não sabes que o marido é meu figadal inimigo? Só se a vir por aqui destacada do osso do seu osso... Ella ainda agora aqui esteve com D. Leocadia... Jorge.--Com minha mulher! Eduardo.--Sim... Jorge.--Estou perdido!... Deu-lhe as cartas!... Eduardo.--Daria?! Que grande immoralidade! Jorge.--E por isso Leocadia se retirou... Eduardo.--E olha que não hia boa... Parece-me que a estas horas já ella admirou o estilo das tuas preciosas cartas!... Olha... queres vêr Julia?... Ella vem para aqui... Esconde-te atraz d'essa barraca, em quanto ella te não vê... e quando passar, falla-lhe... Jorge (_cumpre_).--Que hei-de eu dizer-lhe?!... Eduardo (_sorrindo_).--Vê se ella comprehende o _o teu nobre sentimento_... Jorge.--Ella não pára a ouvir-me... tu verás... Eduardo.--Se não parar, anda tu com ella... (_Retira-se_). SCENA VIII. Jorge _e_ Julia. Jorge.--Não tenho animo... Sou um imbecil... Julia (_sem o vêr, sentando-se em cadeira_).--A minha querida vingança!... Não vim só para soffrer... Alguem ha-de soffrer comigo... Jorge (_dirigindo-se com irresolução_).--Animo! Julia (_voltando-se de repente, e erguendo-se_).--O senhor!... (_Quer retirar-se_). Jorge (_sustendo-a_).--Não me fuja... Julia.--Retire essa mão, senhor! Jorge.--Esse enfado é muito pouco senhoril... Esta mão não mancha a sua pureza... Julia.--Para mim tem o horror de mão que me feriu com um punhal... O senhor não tem dignidade nenhuma... Retire-se, que meu marido póde vêl-o. Jorge.--Que veja... Eu não temo seu marido... Julia.--Pois não o tema a elle, mas respeite-me a mim, para que a sua posição de marido seja respeitada... (_Eduardo tem vindo por entre as barracas esconder-se atraz da mais proxima do dialogo_). Jorge.--Eu já me não respeito na minha posição... Seu marido que tire represalias, que eu sou indifferente a todos os ultrajes d'essa ordem. Eduardo (_á parte_).--Eu é que sou o cynico... Julia.--Então devo acreditar que o senhor requintou em immoralidade... Jorge.--Acredite o que quizer... Saiba que foi uma paixão que me perverteu... Hei-de cuspir na sociedade, visto que a não posso calcar aos pés... Despreso todas as formalidades... Para a desesperação não ha conveniencias a guardar... Eduardo (_á parte_).--Eu é que sou o cynico!... Julia.--Pois, senhor, eu entendo que as devo guardar todas... Snr. Jorge, tenha vergonha diante da sua propria consciencia. (_Vai retirar-se_). Jorge (_segurando-a_).--Ha-de ouvir-me... Que destino deu ás minhas cartas? Julia.--Entreguei-as a sua senhora. Jorge.--Isso foi um vil procedimento... Julia.--Deveria antes entregal-as a meu marido? Jorge.--Não tenho nada com seu marido, Julia... Não me cite tantas vezes o nome de seu marido, que é de nenhuma importancia n'este objecto... SCENA IX. _Os mesmos e_ Alvaro _sahindo da barraca, vestido de banho_. Julia.--Ah! meu marido... Eduardo (_escondido_).--Isto ha-de ser bonito... Alvaro.--Pois, snr. Jorge, eu pensei que importava alguma cousa n'este negocio... Isto que é? Cahiram miseravelmente n'um silencio estupido!... Julia, tu não fallas? Snr. Jorge! não fique embuchado!... O senhor está-me dando uma importancia, que não era a do seu programma... Jorge.--Esta situação é melhor que a não prolonguemos. V. s.^a vai pedir-me uma satisfação... (_Julia retira-se_). Alvaro.--Está enganado... Não tenho de que lhe pedir satisfação... Faz v. s.^a muito bem... Não lhe desagradam os olhos d'aquella senhora, e põe os seus meios... Tudo isto é natural... Que satisfação lhe hei-de eu pedir!... Eduardo (_á parte_).--Eu é que sou o cynico! Jorge.--Acabemos, snr. Alvaro... Alvaro.--Tranquille-se, cavalheiro... Eu ainda não disse senão metade. Visto que o senhor gosta dos olhos de minha mulher, eu aproveito a occasião para lhe dizer que não desgosto dos olhos da sua. Com a differença, porém, que eu, declarando-me a v. s.^a, dou-lhe a importancia que v. s.^a me não deu... Visto que nos encontramos no mercado, permutaremos os olhos de nossas mulheres. O senhor fica com os olhos da minha, e eu com os olhos da sua... Parece-me que me vai pedir uma satisfação... Jorge.--Não sei com que intenção me faz semelhante proposta... Alvaro.--Com a melhor intenção do mundo... É um contracto bilateral... sem testemunhas... Eu concedo-lhe a frequencia de minha casa para v. s.^a estudar bem os olhos de minha mulher, e o cavalheiro franqueia-me occasiões de estudar os olhos da sua. Eduardo (_á parte_).--Eu é que sou o cynico!... Jorge.--E se na sociedade se desconfia esta convenção? Alvaro.--Deixe-se d'isso... A sociedade, deu-nos diplomas de excellentes pessoas... Eu creio que ambos temos a finura necessaria para desempenharmos, sem pateada, os nossos papeis... Aqui o grande plano é que afastemos do nosso commercio Eduardo, porque esse tem a alma sufficientemente estragada para nos adivinhar... Eduardo (_á parte_).--Muito, obrigado!... Até este me dá diploma de cynico! Alvaro.--Agora, meu amigo, vou tomar banho... Hoje á noite espero-o com sua senhora em minha casa para tomarem uma chavena de chá... (_Apertando-lhe a mão_). _Au revoir_, meu caro senhor... (_Sahem_). Ó banheiro!... Vamos lá, que nos foge o mar... SCENA X. Eduardo.--Visto que eu sou o cynico, e os virtuosos são estes, passo a ser um pouco mais virtuoso que elles, para que elles sejam cynicos como eu... Alguma vez hei-de atinar com a virtude... A verdadeira acho que é a d'elles... O genero não é caro... Veremos... CORRE O PANO. ACTO III. _Passa-se em casa do visconde de Valbom. Sala faustuosa: luxo sem gosto: muita cadeira de estôfos amarellos: muito relogio: muita bugiaria de vidro, de mistura com porcellanas de Sevres, e adornos d'ouro, sem significação nem serventia_. _É noite_. SCENA I. Viscondessa de Valbom, D. Julia, Jorge, visconde de Valbom. _Um creado com uma bandeja, recebe as chavenas do chá; e retira-se_. Viscondessa (_a Jorge_).--A snr.^a D. Leocadia não virá? Jorge.--É natural que venha. Viscondessa.--Com o capellão? Jorge.--Sim... com o capellão... Viscondessa (_a Julia_).--O snr. Alvaro que andará a fazer? Julia.--Naturalmente... das suas... Visconde.--Das suas... isso que quer dizer?! Alvaro é o exemplo da honradez personalisada... Julia.--Agradecida a v. exc.^a, snr. visconde. Viscondessa.--Não tem de que, menina. Seu marido é um anjo, e a sociedade faz-lhe justiça. A reputação que elle tem grangeado é a prova infallivel das suas virtudes. Elle, e aqui o snr. Jorge são os dous cavalheiros mais queridos da nossa roda. Foram rapazes, sem rapaziadas. São maridos, sem mancha, e hão-de ser sempre modêlos de probidade a todos os respeitos. Jorge.--Muito grato, minha senhora. Tenho empregado todos os esforços por merecer á sociedade um bom conceito, e creio que o tenho conseguido... Viscondessa.--Porque o merece. Se o não merecesse, creia que o não teria, porque a opinião publica é justiceira, e nunca se engana com os bons, ou com os maus... Não se lembra da opinião que teve Eduardo? Jorge.--Uma pessima opinião. Visconde.--Oh! de certo, aquillo era um homem com uma lingua depravada, e costumes horriveis... Viscondessa.--Mas vejam que lhe chegou a sua hora de reflexão. Retirou-se completamente da sociedade; viveu tres mezes encerrado comsigo mesmo na solidão, e voltou para o mundo completamente desfigurado. É outro homem... Julia.--Totalmente outro. Visconde.--Faz mesmo espantar a differença que o homem fez!... Jorge.--É pasmosa! Viscondessa.--As suas palavras são todas serias, medidas, e reflectidas. Os seus modos são circumspectos, civis, e insinuantes. O seu vestir é muito grave, muito decente, e muito sisudo... Dizem-me que dá esmolas... tenho lido nos jornaes alguns actos de philantropia que o honram muito... em fim, está um cavalheiro, que não deixa nada a desejar! Vejam o que são as cousas!... Aqui ha quatro mezes, se elle me olhasse para uma das minhas creadas, despedil-a-hia immediatamente; e hoje, se eu tivesse uma filha, dava-lh'a com immensa satisfação... Jorge.--Muito se lucra, quando se é honrado!... Visconde.--Pois não! Não ha nada como a honra! Jorge.--Oh! a honra é a salvaguarda de todas as inquietações! Viscondessa.--Que precipicios não encontrou Eduardo em quanto se deixou hir á mercê dos seus extravagantes desejos!... Visconde.--Oh!... era insoffrivel!... Nunca se viu assim uma libertinagem!... Julia.--Ouvi fallar tão mal d'esse homem, e nunca me disseram distinctamente os seus crimes. Visconde.--Immensos, immensos... Viscondessa.--Immensissimos, immensissimos... Julia.--Mas posso eu saber algum d'elles? Visconde.--Eu não sei de nenhum; mas dizem por ahi que são muitos... muitos... Julia.--E a snr.^a viscondessa sabe quaes são? Viscondessa.--Tambem não sei; mas, na boa roda, diziam que elle era um prodigio de immoralidade... Julia.--E o snr. Jorge? Esse ha-de saber muitas cousas... Jorge.--Creio que ha muitas scenas horriveis na vida d'esse homem, todavia, eu não sei nenhuma... Julia.--Mas vive com elle ha mais de sete annos... Jorge.--É verdade... mas, como elle me não chamava a testemunhar os seus desvarios, nada sei... Julia.--O que se segue é que nenhum de nós sabe dizer em que consistiu a depravação de Eduardo!... Viscondessa.--A sociedade não se engana, menina. Ella que o condemnou lá sabe os motivos porque o fez. A virtude não é nunca infamada. Veja lá se seu marido, e aqui o snr. Jorge foram victimas da calumnia!... Julia.--Mas eu queria que me citassem um crime de Eduardo... Um creado--O snr. Eduardo... SCENA II. _Os mesmos e_ Eduardo. (_Eduardo veste todo de preto. Maneiras muito acanhadas, dando-se uns ares de virtude idiota. Uma cortezia a cada palavra. Recolhido sempre em si, affectando uma imbecilidade moral, de fazer piedade_). Viscondessa _e_ visconde.--Muito bem vindo. Eduardo.--Como passaram vv. exc.^{as}? Viscondessa.--Maravilhosamente... queira sentar-se. Eduardo.--E a snr.^a D. Julia? Julia.--Um pouco affectada dos nervos. Eduardo.--Muito sinto, minha senhora, Deus a poupe a soffrimentos de todo o genero... E o meu amigo Jorge... como passa? Jorge.--Assim, assim... Viscondessa.--Então! senta-se? (_Eduardo senta-se_). Eduardo.--Como está tua senhora, Jorge? Viscondessa.--Estamos á espera d'ella. Eduardo.--E seu marido, snr.^a D. Julia? Visconde.--Não deve tardar... (_Eduardo em ar de pensativo, esfregando as costas das mãos_). Viscondessa.--Elle ahi vai recahir nas suas melancolias! Não o queremos assim! Que tem? Eduardo.--Pesares... que vem de longe, minha senhora... Visconde.--O passado já lá vai... Agora v. s.^a é outro homem... Toda a gente diz que quem o viu e quem o vê... Viscondessa.--Nada de tristezas. A virtude é sempre alegre... Ó menina, vá tocar um bocadinho... Tenho notado que o snr. Eduardo está melhor quando ouve tocar... Que quer que ella toque? Eduardo.--O que s. exc.^a quizer... Julia.--Cousas tristes? Viscondessa.--Não, menina! Bem triste está elle!... Toque alguma cousa do Barbeiro de Sevilha... Julia.--Pois, sim... (_Vai tocar na sala immediata_). Viscondessa (_a Eduardo_).--Quer que vamos á sala do piano, ou quer gosar de longe? Eduardo.--De longe, se v. exc.^a não manda o contrario. (_Jorge, logo depois, segue Julia_). Visconde.--Muito folgamos de o vêr rehabilitado na opinião publica. Eduardo.--E estarei-o eu por ventura? Viscondessa.--Está... Veja... n'um só mez recuperou os creditos perdidos em tantos annos... Eduardo.--Muito devo a Deus, porque é o contrario que costuma acontecer... Então a snr.^a D. Julia não nós dá o prazer de a ouvirmos? Vai-nos demorando o goso... Visconde.--Eu vou lá... (_Sahe_). SCENA III. Eduardo _e a_ viscondessa. Viscondessa (_com vivacidade_).--Vês como sahiu certo tudo o que eu te disse? A sociedade é uma excellente pessoa. Eduardo (_mudança de tom. Ouve-se o piano_).--Tenho notado isso... Achas que vou bem assim? Viscondessa.--O melhor possivel... Ponto é que te conserves... Eduardo.--N'este pé de virtude? Já me não desmancho... E, com effeito, dizem que sou beato, virtuoso, martyr, contricto... Viscondessa.--Até o visconde está espantado da tua mudança... Um creado.--A snr.^a D. Leocadia, e o snr. Alvaro. (_Sahe_). Viscondessa.--Não sei o que me parece este grupo, a estas horas!... Sabes que eu suspeito... Eduardo.--Suspeitas?!... Oh!... eu não... Facilidades da innocencia!... SCENA IV. _Os mesmos_, D. Leocadia, _e_ Alvaro. Viscondessa.--Tão tarde!... Leocadia.--Foi impossivel aquietar o pequeno até agora... Eduardo (_tornando ao tom beatifico_).--Passou bem, minha senhora? Leocadia.--Bem... Alvaro (_dá uma gargalhada_). Viscondessa.--Que riso é esse? Alvaro.--Não é nada, minha senhora... Quem toca, é minha mulher? Viscondessa.--É sim... se quer vá á sala... Alvaro.--Não, minha senhora. (_Senta-se trombudo a um canto da sala_). Viscondessa (_a Leocadia_).--Que terá elle? Estranho-o!... Leocadia.--Eu não sei... Chegou a minha casa quando eu estava para sahir... Disse-me que me acompanhava... veio comigo sem dizer palavra... e não sei mais nada, nem me importa... Eduardo (_pesaroso_).--Terá dôr de dentes? São dôres dos nossos peccados... Deus nos acuda... Viscondessa.--Venha cá, snr. Alvaro!... O nosso bom amigo Eduardo, que é o S. Paulo dos nossos tempos, pergunta se lhe doem os dentes... (_Alvaro dá outra gargalhada_). Leocadia.--Ora entendam lá aquillo!... SCENA V. _Os mesmos, e_ Julia, Jorge, _e o_ visconde. Jorge (_apertando a mão de Leocadia_).--Até que finalmente... Julia (_apertando a mão de Alvaro_).--Com effeito... demoraste-te. Alvaro.--Negocios... Leocadia.--O pequeno não queria adormecer... (_Alvaro dá terceira gargalhada_). Jorge.--Que riso é esse? Julia.--A que vem o destempero d'essa gargalhada?... Viscondessa.--Lá está outra vez mergulhado na sua melancolia o snr. Eduardo!... Quer, talvez, mais musica... Eduardo.--Se não receasse ser indiscreto, pedia a v. exc.^a aquella aria da Norma... no acto final... Viscondessa.--Executada por quem? Eduardo.--Por v. exc.^a... dá-lhe uma graça particular... Não quero offender as duas senhoras que a desempenham habilmente; mas não sei que toque melancolico... Viscondessa.--Pois sim... hirei... Vamos todos... Eduardo.--Se me concedesse... Viscondessa.--Ficar sósinho aqui?... Pois sim... fique. Visconde.--Eu cá fico com elle... Viscondessa.--Não, não... deixa-o... são necessidades organicas... Eu tambem tenho d'estas tempestades moraes... Vozes.--Pois sim... pois sim... (_Sahem_). SCENA VI. Eduardo, _e depois_ Julia. Eduardo.--A gargalhada de Alvaro quer dizer muito... (_Ouve-se a aria da Norma_). O maldito veria alguma cousa? Se viu, lá vai a terra todo o meu edificio de virtude... Dizem que ella é facil, eu vejo-me illaqueado n'uma rede tal, que se me descobrem não sei por onde hei-de evadir-me... Que pena se me não deixam ser honrado!... Tenho, só n'um mez, colhido tantas palmas de virtude, que, passados tres, n'este andar, eu todo seria um palmito... Julia (_agitada_).--Eduardo... Eduardo.--Julia... Julia.--Pelo amor de Deus, desvanece-me d'uma suspeita que me despedaça... Eduardo.--Que é?! Julia.--Tu amas Leocadia. Eduardo.--É falso... Julia.--Mas ella adora-te com delirio... Eduardo.--Que culpa tenho eu? Julia (_tomando-lhe a mão com frenesi_...)--Não me sacrifiques a ella... a nenhuma... porque nenhuma te amará tanto... Jorge (_ao fundo_).--Isto é espantoso!... Eduardo.--Não vês que represento um papel hypocrita, tão contra o meu caracter, para te não perder? Jorge (_o mesmo_).--É incrivel!... Julia.--Conheço tudo... meu anjo... Vou á sala... póde notar-se a minha falta... SCENA VII. Eduardo , _e depois_ Leocadia, _e depois o_ Visconde _na porta do fundo sem ser visto_. (_Ouve-se ainda a musica da Norma_). Eduardo.--Tornemos á posição do benemerito Tartufo. Oh meu querido Moliere, onde quer que estás recebe os meus agradecimentos pelo excellente molde que me cá deixaste! Leocadia (_impetuosamente_).--Eduardo... só duas palavras... Olha que Alvaro viu-te sahir de minha casa... Eduardo.--Viu?! estão explicadas as gargalhadas... Leocadia.--Receio maus resultados... Elle é capaz de tirar qualquer vingança... Oh meu Deus!... estou sobre um vulcão... Eduardo.--E eu dentro d'uma tina... Deixa correr os successos... Vai, que podem descobrir-nos... Visconde (_á parte_).--Como se explica isto? Leocadia.--Que has-de tu dizer se elle nos denuncia? Eduardo.--Provo que não sou mais immoral que elle... As pretenções são as mesmas... Visconde.--Isto é bonito!... (_Retira-se_). Leocadia.--Que situação a minha!... Eduardo.--Retira-te, que podem surprehender-nos... (_Leocadia sahe_). SCENA VIII. Eduardo, _e depois a_ viscondessa, _e_ Alvaro _ao fundo_. Eduardo.--Atropellam-se os acontecimentos!... Tudo isto faz persuadir que eu tenho sido um homem verdadeiramente virtuoso! No tempo em que eu era cynico, antes que a sociedade me chamasse regenerado, as mulheres não andavam assim n'uma dobadoura em redor de mim! Ó benevola opinião publica, quanto te devo!... Ahi vem outra que me não faz muita honra!... Viscondessa.--Aproveitei um instante para estar só comtigo antes que elles venham... Eduardo.--Como és carinhosa! Viscondessa.--Desconfiei que Leocadia tivesse vindo para aqui... Sabes que tenho ciumes de todas as mulheres!... Alvaro (_á parte_).--Que ouço!... Eduardo.--Continuo a representar bem? A platea applaude?... Viscondessa.--O visconde disse-me n'este momento que tinha muito que contar-me... perguntei-lhe a que respeito... e elle de fugida pronunciou o teu nome e de Leocadia... Alvaro (_aparte_).--E Leocadia!... Eduardo.--E Leocadia!... Como se entende isso?... Viscondessa.--Não sei... Mudemos de tom que elles ahi vem... SCENA IX. _Os mesmos, e_ Julia, Alvaro, Jorge _e_ Leocadia. Viscondessa (_com emphase_).--Pois não queremos uma virtude assim melancolica... É necessario que resurja d'esse abatimento moral, snr. Eduardo... A verdadeira felicidade está na consciencia. O seu passado não tem a pedir contas ao seu presente... A sociedade abre-lhe o braços como ao filho prodigo... (_Alvaro solta uma risada_). Que riso é esse, snr. Alvaro? Alvaro.--É um riso nervoso!... Eduardo (_á parte_).--Mau!... Leocadia.--Não tem razões para tanta melancolia!... É estimado geralmente pelas suas virtudes, e merece a confiança de todas as pessoas... (_O visconde solta uma risada_). Que risada é essa, snr. visconde? Visconde.--É uma risada como a d'aquelle senhor (_apontando Alvaro_). É uma risada nervosa! Eduardo (_á parte_).--Peor!... Julia.--Parece que escarnecem a virtude!... Estas transfigurações moraes custam muitas amarguras... Eu comprehendo a melancolia do snr. Eduardo... Lembra-se do que foi, e, no prazer do que é, sente pesar de o não ter sido desde muito... (_Jorge solta uma risada_). Tambem o senhor se ri? Jorge.--É uma risada como a d'aquelle senhor... (_apontando Alvaro_) é uma risada nervosa... Eduardo (_á parte_).--Está tudo por terra!... (_Alto_). Vejo que os meus amigos estão muito nervosos!... Banhos de mar podem ser-lhes proveitosos... Não acho bonito que me escarneçam... Fazem-me lembrar a fabula do leão e do... Em fim, seja tudo em desconto das minhas culpas!... (_Riem todos tres_). Ora comprehendam isto!... É um abuso do riso!... Eu não lhes mereço isso, senhores! Dizem por ahi que eu sou um honrado homem, e não se cospe assim na honra... Jorge (_á parte_).--Vou-lhe arrancar a mascara!... Visconde (_á parte_).--Hypocrita! Alvaro (_á parte_).--O impostor não passará d'hoje... Viscondessa.--Que falsa posição é esta? Leocadia.--Não entendo isto! Julia.--Nem eu! Eduardo.--Nem eu!... Viscondessa.--Que modos são esses!... em que pensam os senhores?... Alvaro.--Eu pensava nos recursos do talento depravado!... Senhores!... é necessario que se acabe este comedia d'algum modo!... Aquelle senhor (_indicando Eduardo_) é um impostor! Eduardo.--Eu! Calumnia! infamia... quero as provas... Alvaro.--A snr.^a D. Leocadia que as dê... Visconde.--Justamente: a snr.^a D. Leocadia que as dê!... Jorge.--Minha mulher!... Leocadia.--Eu! Eduardo.--Ella!... Alvaro _e_ Visconde.--Sim! ella!... Jorge.--Pois bem... cáia a mascara... Esse senhor é um infame seductor! Eduardo.--Eu! Viscondessa.--Elle! Jorge, Visconde, _e_ Alvaro.--Sim, sim, elle! Eduardo.--Provas, senhores calumniadores! Jorge.--Provas? a snr.^a D. Julia que as dê! Alvaro.--Minha mulher! Julia.--Eu! Eduardo.--Ella! Jorge _e_ Visconde.--Sim, sim, ella! Alvaro.--N'esse caso... rasgue-se o véo do mysterio... Todos somos victimas da hypocrisia d'esse homem! Visconde.--Menos eu! Viscondessa.--Nem eu! Eduardo.--Provas, senhores! Alvaro.--Provas? a snr.^a viscondessa que as dê. Visconde.--Minha mulher! Viscondessa.--Eu! Eduardo.--Ella! Alvaro _e_ Jorge.--Sim, sim! Eduardo.--Todas tres!... Alvaro (_para Julia_).--Responde! Jorge (_para Leocadia_).--Que dizes a isto? O visconde (_para a viscondessa_).--Pois não te defendes? Todas tres.--É falso!... Eduardo (_mudando de tom_).--Eu vou defendêl-as, minhas senhoras! Alvaro.--A snr.^a D. Leocadia não tem defeza nenhuma, porque... Eduardo.--Silencio! Jorge.--A snr.^a D. Julia não tem defeza nenhuma, porque... Eduardo.--Esperem!... Visconde.--Concordo que nenhuma d'essas tem defeza!... mas é preciso que me provem que... Eduardo.--Alto lá... Queiram retirar-se, minhas senhoras... É defeza a presença das rés no tribunal que vai installar-se... Queiram retirar-se... (_Ellas sahem_). SCENA X. Eduardo, Jorge, Alvaro, _e o_ Visconde. Eduardo.--Venham cá... Os senhores não tem ouvido dizer que eu me regenerei? Respondam, sim ou não? Alvaro.--Qual _regenerou-se_! É um impostor!... Eduardo.--Concordemos em que sou um impostor. Mas digam-me: a opinião publica a meu respeito é essa? Visconde.--Não é... porque o senhor enganou-nos. Eduardo.--Pois, se não é, porque não respeitam os senhores a opinião publica á qual me mandaram obedecer? Visconde.--Já lhe disse que a opinião publica está illudida com o senhor! Eduardo.--E d'antes? ha quatro mezes era mais verdadeira que hoje? Jorge.--Não quero disputas... Não respondo ao seu interrogatorio... Quero uma satisfação immediata. Alvaro.--E eu tambem. Eduardo.--E o snr. visconde? Visconde.--Veremos, depois... Eduardo (_sorrindo_).--Acha que não vale a pena decidir já... Pois lá hiremos... Mas, antes d'isso, queiram attender-me: os senhores, com uma bala, em duello, podem matar-me, primeira loucura; e, se me não matam, arruinam a minha boa reputação, que eu aprecio mais que a vida; segunda asneira... Que lucram os senhores com isto? Alvaro.--Nada de philosophias!... É indispensavel para a minha honra um duello... Jorge.--Não prescindo. Eduardo.--Pois se não prescindem, lá vamos... Mas os primeiros que hão-de bater-se um com o outro, são os senhores! (_Indicando Alvaro e Jorge_). Alvaro _e_ Jorge.--Nós?!... Eduardo.--Os senhores... Alvaro.--Porque?! Eduardo.--Porque teem trabalhado reciprocamente na sua deshonra. Jorge.--Isso é uma nova infamia! Eduardo.--Mãos na consciencia, meus amigos! O contracto feito ha quatro mezes na praia dos Inglezes não os exime de serem honrados! Alvaro _e_ Jorge.--Na praia dos Inglezes!... Eduardo.--Querem explicações?... Vejam lá o que resolvem... Querem explicações?... Que dizem?!... Esse silencio annuncia bonança... Aproveitemos o vento que é favoravel... Concordam em que occultemos mutuamente as nossas miserias? Eu de mim... (_Comprime os labios com os dedos_...) Os senhores, se -----File: 245.png---\psaborano\zurc\Manela\psaborano\luisa\---------------são honrados como a opinião publica os apregôa, calem-se tambem... Visconde.--Mas eu é que não entro n'esse contracto... Eduardo.--Nem lh'o propuz... mas, v. exc.^a contando com o silencio d'estes cavalheiros, de certo não quererá uma ignobil publicidade a respeito de... Veja lá o que resolve... Visconde.--Mas v. s.^a não ha-de entrar mais em minha casa... Eduardo.--D'accordo. Amanhã embarco para a exposição de Pariz, e tenciono viajar tres annos... Serve-lhe a condição?... O silencio approva... Muito bem... (_Ao fundo_). Minhas senhoras! queiram entrar!... (_As damas entram_). Vv. exc.^{as} foram julgadas innocentissimas e absolvidas... Continuamos todos a ser excellentes pessoas a todos os respeitos. Estes senhores, de parte a parte, pedem perdão das calumnias sordidas com que quizeram reciprocamente manchar os seus nomes... Viscondessa.--Assim o suppuz! Julia.--Assim devia acontecer! Leocadia.--Mas eu não perdôo a quem me infamou! Viscondessa _e_ Julia.--Nem nós! Eduardo.--Hão-de perdoar, que são muito boas senhoras, e o perdão das injurias é o sentimento mais nobre do coração humano... Eu retiro-me com os meus creditos, e vv. exc.^{as} ficam com os seus... Muito boas noites... (_Sahe_). * * * * * Os outros, como é natural, ficam a olhar uns para os outros com aquellas caras proprias de taes conflictos. O author vem fóra dizer que não ha na comedia allusões nenhumas. A platéa retira satisfeita, e continúa a guardar-se dos cynicos. No dia seguinte os jornaes dizem que a comedia é immoral, e attentatoria contra os bons costumes. Os Sganarellos mandam comprar o jornal, e mostram-no aos compadres. O author, conscio de que o mordem, vem no conhecimento de que os mordentes são os legitimos _Orgons_ d'este seculo; mas, um pouco menos felizes que os d'uma grande comedia, que o leitor, se se não recorda, ou não leu nunca, póde encontrar com o titulo de _Tartuffe_. Se, todavia, detesta a letra redonda, estude a vida pratica, e chegará á mais difficil das formaturas, ao _ultimatum_ da sabedoria: «o conhecimento dos homens.» É tão facil, ao primeiro intuito, estremar o cynico do hypocrita!... Dai-me o primeiro, que repellis, e não me relacioneis com o segundo, que abraçaes: que eu, profundamente grato, ficarei pedindo a Deus que vos augmente o dinheiro, e vos conserve uma saude bem vermelha, bem gorda, para que a virtude não seja sempre uma irrisão n'este planeta. Disse. FIM. INDICE. Morrer por capricho (romance) 5 Uma paixão bem empregada (romance) 25 De abysmo em abysmo (romance) 35 Aventuras d'um boticario d'aldêa (romance) 41 Cousas que só eu sei (romance) 55 Dinheiro! dinheiro! (romance) 109 A caveira (romance) 131 Uma praga rogada nas escadas da forca (romance) 155 Pathologia do casamento (drama em 3 actos) 183 Notas: [1] Systema pathologico do snr. Borges de Castro, facultativo distincto, na cidade do Porto, em 1853. [2] Escripto em 1853. [3] ....... End of Project Gutenberg's Scenas Contemporaneas, by Camilo Castelo-Branco *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK SCENAS CONTEMPORANEAS *** ***** This file should be named 23203-8.txt or 23203-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/3/2/0/23203/ Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. They may be modified and printed and given away--you may do practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License (available with this file or online at http://gutenberg.org/license). Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is in the public domain in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country outside the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org 1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived from the public domain (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg-tm License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than "Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided that - You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, "Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." - You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg-tm works. - You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. - You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg-tm works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread public domain works in creating the Project Gutenberg-tm collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain "Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at http://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director gbnewby@pglaf.org Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit http://pglaf.org While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: http://pglaf.org/donate Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: http://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.